A sala já sabia como respirar quando ele estava presente. Não era superstição; era memória muscular. A pedra lembrava o peso dos passos, o ar lembrava o compasso da música, o público lembrava as regras — e os próprios batimentos, sem perceber, iam se alinhando ao ritmo que George impunha sem dizer palavra.
Ele não se aproximou de Clô como quem chega a um corpo; aproximou-se como quem chega a um código. Parou a dois passos do X de ferro e, por um segundo, o mundo se transformou num diapasão: tudo vibrava numa mesma nota, aguda e invisível. A máscara desenhava nele uma espécie de colmeia de sombras: não dava para ver os olhos, mas dava para sentir para onde eles apontavam. Não houve carinho no primeiro gesto, mas houve respeito. Foi técnico e foi belo — como um restaurador que passa a palma da mão a milímetros da tela antes de decidir onde tocar.
— Palavra — disse ele, numa voz que não precisava ser alta para ocupar todo o espaço.
— Âmbar — respondeu Clô, com a clareza de quem recita um salmo.
A casa tinha o hábito de repetir. O mestre de cerimônias, do canto, fez que sim com a cabeça, como um notário invisível. Uma das assistentes mostrou com dois dedos a sequência de sinais combinados: mão aberta para parar tudo, dois toques discretos no ombro para diminuir intensidade, três para encerrar a cena. A outra assistente verificou fivelas, acolchoamentos, a distância exata entre punhos e tornozelos, o ângulo da coluna. Não havia urgência ali; havia revisão de pré-voo.
George ergueu a mão, os dedos longos descrevendo um gesto no ar, e a música obedeceu. Cordas baixas, pulsantes, entraram como se alguém abrisse uma porta para um cômodo que cheira a madeira antiga. Ele circulou a cruz em silêncio, uma volta completa, como quem estuda um mapa antes de sair do cais. O público inclinou o tronco alguns milímetros, no limite do imperceptível. Pelo espelho, era possível ver os dois: o homem e o reflexo do homem, a cruz e a sombra da cruz. Era quase litúrgico.
Quando tocou, não tocou: roçou. A ponta dos dedos não descarregou a mão; escreveu. Traçou alongadamente o desenho das tiras no metal, subiu pela haste oblíqua do X, mediu com a ponta do indicador o espaço entre a correia e a pele, como um afinador que verifica a tensão de uma corda. A Clô respirou mais fundo. O público ouviu. Não era barulho; era a primeira palavra de uma língua que todos ali sabiam falar, ainda que com sotaques diferentes.
Ele testou a circulação, deslizando os dedos pelo antebraço até o pulso, pressionando levemente, sentindo o retorno do sangue. Verificou os ombros, o alinhamento da nuca, a curva natural da lombar — tudo protegido, tudo em posição. Passou a mão pela gargantilha com a precisão de quem confere um selo: não apertada, não solta, firme o suficiente para lembrar, gentil o suficiente para não machucar. A tatuagem — aquela assinatura discreta sob a pele — permaneceu coberta pelo desenho de renda que fazia do corpo uma caligrafia.
A sala ouviu o primeiro som das tiras de couro quando George as recolheu de uma bandeja, devagar. Não havia pressa. As tiras não eram armas; eram frases. Ele as desenrolou com uma paciência quase monástica, deixando que o próprio peso das tiras dissesse qual seria o próximo movimento. O couro fez aquele som que não é exatamente som — um sussurro grave, como vento passando num corredor estreito.
— Respire comigo — disse ele, não como pedido, mas como pista.
Clô obedeceu. Inspiração em quatro tempos, expiração em seis. O corpo foi entrando num trilho. O público, sem querer, entrou junto: um mar de peitos subindo e descendo quase no mesmo compasso. George esperou três ciclos completos. Só então inaugurou o espaço entre o gesto e o toque. O couro cortou o ar e pousou não para ferir, mas para acordar. O primeiro contato não foi impacto; foi um acento — como o ponto e vírgula que separa duas ideias para que respirem.
O som espalhou-se pela abóbada com a precisão de uma campainha. E antes que qualquer interpretação se formasse, ele entregou outro acento, igual, no lado oposto. O corpo tem simetria; a linguagem também. A cada par, uma pausa. E, nas pausas, os olhos — invisíveis — dele permaneciam fixos na resposta dela: a pele corada, a respiração, a tensão que sobe e depois cede, a cabeça que cai um grau e encontra o lugar. Se alguém ali não entendia por que chamavam aquilo de ritual, entendeu nesse instante: mais do que dor ou prazer, era cadência.
George alternou instrumentos sem espetáculo. Deixou as tiras descansarem, recolheu um cabo mais curto, acolchoado, que produzia um timbre diferente no ar — um tóim surdo que parecia vir do chão. Não batia: pontuava. Era um metrônomo. Tocava em pontos que não nos interessa nomear aqui; o essencial é que eram pontos que despertavam sem expor, conduziam sem exibir. A cada sequência, a mão livre dele pairava próxima à pele, como quem regula, como quem diz: “aqui chega, aqui volta; aqui sobe, aqui desce”.
A música, obediente, ampliou a tessitura. Entraram sopros. Alguém, em algum ponto da sala, mordeu o lábio — não por volúpia, mas por concentração. O mestre de cerimônias registrava sem escrever: postura perfeita, técnica impecável, espaço seguro. As assistentes, estátuas vivas, apenas trocavam ferramentas com a destreza de enfermeiras no centro cirúrgico — sua dança não era menos precisa por ser quase invisível.
Clô começou a emitir sons entre a respiração e a palavra, coisas que não carregavam vocabulário, mas diziam entendimento. George, fiel à própria partitura, acrescentou o que a casa chamava de contraponto: um toque leve com uma pena — sim, uma pena — que ele passou de leve sobre as mesmas regiões despertadas antes. Não se tratava de gentileza; tratava-se de contraste. O corpo, surpreendido, reorganizou sensações. A sala inteira percebeu a eletricidade sutil dessa transição e alguns olhos, por trás das máscaras, brilharam como vidro sob vela.
— Escala — ele disse, baixo.
A assistente à direita respondeu com um simples “sim”. Era a senha para uma progressão graduada, previamente acordada. Três níveis a mais, depois dois a menos, depois manutenção. Em cada mudança, George não perguntava “está bem?” com palavras; perguntava com pausa. A pausa era o jeito que ele tinha de ouvir. E Clô respondia com a postura, com o modo como o corpo se oferecia sem ceder demais, se afirmava sem endurecer. Ali, obediência não significava passividade; significava parceria numa história que os dois sabiam ler.
A plateia, fascinada, quase não piscava. Quem não conhecia pensava: “é brutalidade”; quem conhecia via: “é gramática”. Uma dupla, no fundo, juntou as mãos e apertou dedos, repetindo a respiração em quatro e seis. Um homem de máscara prateada inclinou-se para frente, como se quisesse ouvir melhor os silêncios. Uma mulher, com cada cabelo preso na nuca, pousou o queixo nas costas da mão e sorriu só de um lado: esse sorriso que reconhece acerto.
George mudou o eixo. Não era apenas o que ele fazia; era onde ele estava enquanto fazia. Deu meio passo, o suficiente para que o espelho passasse a duplicá-lo com mais nitidez. Agora, quem olhava via as duas perspectivas: o gesto real e o gesto refletido, que vinha com um segundo de atraso só para a imaginação completar. Foi quando ele levou a mão à nuca dela. Não apertou. Apenas sustentou. O mundo inteiro coube naquela sustentação, porque ali havia uma pergunta: “você está aqui comigo?”. A resposta veio num relaxamento minúsculo, como a rotação de um planeta invisível.
Então, ele parou. Parou de verdade. O espaço entre uma nota e outra virou sala. O couro descansou na bandeja. As mãos retornaram às luvas — não para vestir, para lembrar. Ele não precisava lembrar; ela precisava saber que ele lembrava. Limites não são objetos; são pessoas.
— Palavra? — perguntou, de novo, para provar que não tinha esquecido.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 42
Comments