Um dia de bicicleta

Ajudei Ravi a arrumar o sofá para passar a noite depois do jantar. Tinha passado a maior parte do tempo perdida em memórias, calada e distante.

- Zoe. – ele me chamou depois de eu afofar os travesseiros por um tempo excessivamente longo – Você está bem? Eu disse alguma coisa?

- Tudo bem. – respondi\, endireitando o corpo – Você não precisa avisar sua mãe quando fica por aqui?

Ravi suspirou, depois deu de ombros.

- Minha mãe não se preocupa comigo. Acho que a essa hora ela não deve nem se lembrar do próprio nome.

Bati com a mão na testa. Eu conseguia ser tão insensível as vezes.

- Desculpa. Eu não tive a intenção...

- Zoe... – ele deu um passo adiante e segurou minhas mãos – Estamos muito educados\, cheios de dedos um com um outro.

Era verdade. Depois de me dizer que eu não precisava contar sobre as coisas que haviam me afugentado da minha cidade natal, Ravi estava cuidadoso além do necessário. E eu, depois de saber sobre sua família, ficava o tempo todo pensando antes de falar.

- Vamos tentar relaxar? – sugeriu – Acho que esse negócio de amizade não precisa de tudo isso.

- Já faz um tempo que não faço um amigo novo. – ri.

- Eu também. – ele me acompanhou – Está claro que nós dois temos questões delicadas\, que concordamos em não investigar\, mas acho que podemos apenas relaxar.

- Você tem razão. – relaxei os ombros – Vamos apenas viver um dia de cada vez.

- Isso! – ele exclamou\, soltando minhas mãos – Boa noite.

- Boa noite\, Ravi.

No caminho para meu quarto, vi que a porta de Cora ainda estava aberta. Minha avó estava sentada na cama, folheando um livro.

- Boa noite. – saiu quase como uma pergunta. Eu também estava me habituando a conviver com ela.

- Zoe! – ela exclamou\, erguendo os olhos – Como foi o dia? Gostou daqui?

Dei um passo para dentro do quarto.

- Foi tudo bem. Esse lugar é incrível. – falei com sinceridade – É lindo demais. Mamãe morou aqui?

- Morou. – Cora colocou o livro de lado e bateu com a mão no colchão ao seu lado – Venha cá.

Fui me sentar ao lado da minha avó. Seu quarto era apenas um pouco maior que o meu, com uma cama de casal e um guarda-roupa grande.

- Vejo que você e Ravi se entenderam. – Cora me olhava diretamente nos olhos.

- Ele é uma ótima pessoa. – elogiei.

- Ele é especial. – ela concordou\, balançando a cabeça – Fico feliz que vocês sejam amigos. Ravi precisava mesmo de alguém que não o julgasse por coisas que estão fora de seu controle. – ela fez uma pausa – E você\, obviamente\, precisava de alguém que não fizesse perguntas.

Encolhi os ombros. O momento que mais tinha me preocupado durante o dia tinha chegado. Tentei disfarçar, olhando ao redor.

- Mamãe não gostava daqui?

- Sua mãe tinha gostos diferentes dos meus. – Cora explicou – Quando a oportunidade surgiu\, ela se mudou. Primeiro para o centro da cidade\, e depois para a cidade do seu pai.

Eu queria perguntar sobre meu avô, alguém de quem eu nunca tinha ouvido falar, mas ela estava com a próxima pergunta na ponta da língua e não me deixaria escapar com tanta facilidade.

- Na sua carta\, você não explicou muito bem porque precisava vir para cá. – Cora disse suavemente – Embora eu adore que tenha vindo\, Zoe\, sei que essa vontade não veio do nada. Aconteceu alguma coisa em casa?

Meu coração acelerou. Eu não queria falar sobre aquilo.

- Zoe. – Cora me chamou\, e só então percebi que eu estava olhando para o chão por um longo tempo.

Tantas coisas haviam acontecido... Tantos detalhes que eu jamais poderia explicar com exatidão.

- Zoe. – ela repetiu – Se não está pronta para me contar\, não vou pressionar.

Senti um alívio imenso com as palavras. Cora era tão diferente da minha mãe, tão mais suave e compreensiva. Se fosse minha mãe na minha frente, estaria fazendo exigências e ameaças, talvez estivesse aos berros.

- Desculpe. – encolhi os ombros – Eu não me sinto... não consigo.

- Está tudo bem. – Cora colocou a mão em cima da minha – Você está segura aqui\, e eu estou ao seu lado mesmo que não me conte nada. Se precisar conversar\, no entanto...

- Obrigada. – agradeci com sinceridade.

Quando fui me deitar, estranhei a cama nova e a janela na cabeceira. No meu antigo quarto, a janela ficava do outro lado, longe da cama. Havia um guarda-roupa grande, uma cômoda, uma estante de livros e uma escrivaninha que eu usava para estudar. E, embora eu estivesse aliviada por estar longe, ainda sentia falta da tranquilidade e da segurança que ele me passava.

Rolei na cama por horas, escutando os pingos da chuva do lado de fora, e pensando em coisas que eu não queria pensar. Durante a noite tudo ficava mais difícil, o silêncio e a inatividade dando espaço total para minha mente tomar conta.

Na manhã seguinte eu estava cansada. Encontrei Ravi preparando o café da manhã com um sorriso no rosto e uma disposição invejável.

- Bom dia. Como foi sua primeira noite?

- Bom dia. – suspirei\, puxando uma cadeira – Estranha\, para ser sincera.

Ele me olhou com um meio sorriso, como se entendesse o que eu queria dizer.

- Ah\, já está de pé\, Zoe? – Cora apareceu poucos minutos depois.

- Sim\, eu costumo levantar cedo. – tentei parecer desperta.

Comemos em silêncio por um tempo. Havia um pouco de sol passando pelas janelas, mas o dia prometia ser nublado.

Cora começou a cozinhar logo depois que tiramos a mesa. Ravi colocou tudo que tinha pronto em um cesto e levou para o lado de fora. O acompanhei, na falta de saber o que deveria fazer.

- Para onde vai tudo isso? – perguntei\, seguindo até a lateral da casa.

- Clientes. – me explicou por cima do ombro.

Entramos em um local que deveria ser uma garagem, mas que estava cheio de coisas antigas e duas bicicletas. Nem se Cora tivesse um carro ele caberia naquele espaço.

- E onde estão esses clientes? – perguntei\, observando Ravi colocando a cesta em um suporte em uma das bicicletas.

- Na cidade. Algumas lojas\, mercados... Temos até alguns que recebem em casa. – ele explicou\, manobrando a bicicleta até o lado de fora – Quer vir comigo?

- De bicicleta? – olhei para a outra bicicleta\, apoiada contra a parede da garagem.

- Sim. – Ravi parou para me olhar – Você sabe andar?

- Claro que sei. – respondi apressadamente\, indo pegar a outra bicicleta.

Não era algo que eu fazia habitualmente, mas meu pai tinha me ensinado a andar de bicicleta quando era criança. Eu costumava andar em círculos pelo quintal, ou em frente de casa quando minha mãe deixava. Caramba... já fazia muito tempo.

O terreno irregular não favoreceu muito meu equilíbrio, mas consegui me manter firme e acompanhar Ravi pelo caminho sob as árvores. Era um local lindo, com toda a certeza, mas não muito favorável para a pratica de exercícios – principalmente após tanta chuva.

Quando chegamos na cidade, mesmo com o vento frio, eu estava suando. Na primeira parada, Ravi saltou do banco como se não tivesse feito esforço algum. Deixei que ele entrasse sozinho enquanto eu retomava o fôlego.

As entregas levaram um bom tempo. Vi pessoas sendo educadas com Ravi, outras sendo frias, mas poucas eram verdadeiramente gentis. Eu estava muito longe de entender pelo que ele passava todos os dias.

A volta para casa, principalmente a subida final, me fizeram pensar se eu realmente tinha algum tipo de força. Precisei descer da bicicleta e a empurrar, o que me fez sapatear na lama. Ravi foi educado ao me imitar, mas vi o sorriso debochado em seu rosto.

- Acho que alguém precisa deixar o sedentarismo para trás. – ele comentou depois de colocarmos as bicicletas no lugar.

- Engraçadinho. – apoiei as mãos nas coxas e abaixei o tronco para respirar fundo algumas vezes – Mas talvez eu precise mesmo de um pouco de exercício.

Cora também pareceu se divertir com a minha aparência. Corri para o chuveiro, depois vesti roupas limpas e quentes, e fui me sentar no sofá. Fazia muito tempo que eu não me sentia tão exausta.

Ravi ainda estava do lado de fora, aparentemente cuidado da infinidade de plantas. Como ele podia não estar cansado? Nem mesmo um pouco?

- Tome... – Cora me ofereceu uma xícara de chá quente.

- Obrigada. – aceitei – Como é que ele aguenta isso? – apontei em direção ao lado de fora.

- Ravi sempre fez isso. – ela riu e se sentou ao meu lado – Sempre andou por todos os lugares a pé\, e faz entregas para mim há muito tempo. Eu não me compararia a ele se fosse você.

- É\, seria injusto. – concordei – O que ele está fazendo?

- Ah\, apenas tirando as folhas caídas do caminho. – ela explicou com um gesto despreocupado – Para evitar que eu escorregue.

Depois do almoço a chuva voltou a cair com força, nos obrigando a ficar do lado de dentro. Cora não estava mais cozinhando, então foi ler um livro em seu quarto. Ravi e eu ficamos sentados sob um cobertor quente na sala.

- Quantos irmãos você tem? – perguntei cuidadosamente.

- Seis. – ele respondeu sem hesitar.

- Seis? – repeti\, surpresa.

Isso o fez rir. Não deveria ser uma reação incomum.

- Você\, claro\, não tem nenhum.

- É\, não. – balancei a cabeça em sinal negativo.

Nos entreolhamos por um instante.

- Não somos todos do mesmo pai. – Ravi continuou – Os quatro primeiros\, sim. Na época ela era mais estável\, e\, pelo que ouvi\, ele era um bom marido.

Continuei balançando a cabeça, indicando que eu estava prestando atenção.

- Mas\, então\, minha mãe ficou viúva. – a expressão de Ravi era triste – Isso a desestabilizou\, e então veio o meu pai. Era uma verdadeira guerra em casa naquela época.

Permaneci calada, aguardando o tempo dele.

- Meu pai foi embora quando eu tinha cinco anos. Nunca mais o vi. – ele deu de ombros – Nem faço muita questão. Era pior com ele presente do que agora.

- Sinto muito. – falei em voz baixa.

- Depois disso\, vieram os dois mais novos que são de pais diferentes. Não conhecemos nenhum dos dois e minha mãe não fala sobre o assunto.

Eu sentia que deveria falar alguma coisa, mas não encontrei as palavras, então continuei calada. Era impossível entender todos os sentimentos de Ravi sobre sua mãe, irmãos e os relacionamentos conturbados. Só o que eu conseguia entender era que devia ter sido muito difícil crescer daquele jeito.

- Bom\, eu vou fazer alguma coisa para a gente comer. – ele ficou em pé\, decretando o fim daquela conversa.

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Comments

Solange Borkovski

Solange Borkovski

Coitado do Ravi... Uma vida tão sofrida .../Sob/

2025-08-22

1

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