A discussão começou como sempre: com meu pai gritando por qualquer motivo e eu tentando me manter em silêncio. Mas, naquela noite, alguma coisa quebrou dentro de mim.
— Você não serve pra nada, Joyce! — ele vociferou, levantando-se do sofá com o copo de cerveja na mão.
— Pelo menos eu não fico bebendo o dia todo — as palavras escaparam antes que eu pudesse me segurar.
O silêncio que se seguiu foi mais assustador que qualquer grito.
Meu pai me encarou com olhos vermelhos, não sei se de raiva ou de álcool.
— O que você disse? — ele deu um passo na minha direção.
Julia, no canto da sala, só ajeitou o batom, como se aquilo fosse entretenimento. João, encostado na porta, soltou uma risada baixa, como se estivesse esperando para ver até onde eu iria.
— Você ouviu — respondi, com a voz mais firme do que eu sentia por dentro.
A lata de cerveja voou primeiro, batendo na parede atrás de mim e espalhando líquido morno pelo chão. Eu dei um passo para trás, mas não foi rápido o suficiente.
A garrafa que ele segurava bateu na parede com força e se estilhaçou, pedaços voando como lâminas.
Senti o corte arder na minha bochecha. Um filete de sangue quente começou a escorrer, descendo até o canto da boca. Julia olhou, mas não se levantou. João só riu mais alto.
— Eu também te amo, pai — murmurei, a voz carregada de ironia e dor. — Se o mundo que eu sempre quis não existisse, eu preferia morrer.
Fui para o quarto sem esperar resposta. O sangue já estava secando no rosto quando abri o guarda-roupa. Peguei uma blusa preta, minha jaqueta de couro surrada, e as botas gastas que me acompanhavam desde sempre. Prendi o cabelo num rabo de cavalo alto, passei o batom vinho que eu guardava para ocasiões especiais — e essa, com certeza, era uma delas.
Quando voltei para a sala, meu pai ainda estava lá, respirando pesado.
— Você não vai sair — ele disse, com aquela voz que queria ser ordem.
— Quero ver você me impedir.
Ele não se moveu. Talvez porque sabia que, se encostasse em mim naquele momento, eu explodiria. Passei pela porta sem olhar para trás. Eu não ia limpar a bagunça deles. Não dessa vez.
A rua estava fria, o vento cortando minha pele. Respirei fundo, tentando afastar o peso no peito.
Fui direto para o único lugar que sempre me trouxe paz: a livraria no centro.
O cheiro de papel e café me envolveu assim que entrei. As prateleiras altas, os corredores estreitos… aquele lugar era como um abraço silencioso.
Mas, naquela noite, eu não fiquei ali. Talvez fosse o corte no meu rosto, talvez fosse a sensação de estar à beira de algo.
E então eu vi.
No fim da rua lateral à livraria, uma vitrine pequena, que eu jurava nunca ter visto antes. Uma placa de madeira dizia: Antiguidades Celestiais.
Parei diante da porta. Ela estava entreaberta, e uma luz dourada escapava para a calçada. Empurrei e entrei.
O som do sino pendurado acima da porta ecoou no ambiente. Lá dentro, era como ter atravessado para outro mundo. O cheiro era de madeira antiga e um toque suave de incenso. Havia prateleiras cheias de objetos que pareciam tirados de histórias que eu lia: relógios de bolso com luas gravadas, globos celestes, livros de capa dura com títulos em línguas que eu não conhecia.
O balcão estava no fundo. Atrás dele, um homem idoso, de cabelos brancos e olhos tão escuros que pareciam conter o próprio céu noturno. Ele me olhou como se já soubesse quem eu era.
— Boa noite, senhorita — disse ele, com uma voz calma e grave.
— Boa noite… — respondi, ainda olhando tudo ao redor. — Eu nunca tinha visto essa loja antes.
— Talvez porque ela só apareça para quem precisa encontrá-la.
Senti um arrepio.
Caminhei entre as prateleiras, e algo chamou minha atenção: um colar pendurado numa pequena árvore de metal. Era simples, mas lindo. Um pingente em forma de lua crescente, cravejado com uma pedra azul-escura que parecia ter estrelas presas dentro.
Peguei o colar.
— Quanto custa? — perguntei, virando-me para o velho.
Ele sorriu de um jeito que não era de vendedor.
— Não tem preço. Se você o encontrou, é porque foi escolhida.
Ri, sem acreditar.
— Escolhida? Pra quê?
— Para ter um desejo. Mas há regras… — ele se levantou lentamente, vindo até mim. — Uma vez que colocar o colar no pescoço, não poderá tirá-lo até que o desejo se cumpra.
Olhei para ele, depois para o colar. Era loucura. Mas… eu queria tanto acreditar.
— E se eu não quiser o desejo depois? — perguntei.
— O colar não erra. — Os olhos dele brilharam. — No fundo, você já sabe o que quer.
Engoli em seco.
Coloquei o colar. O metal estava frio contra minha pele, mas a pedra parecia pulsar, quente, como um coração batendo.
Fechei os olhos.
— Me leva para Velaris — sussurrei.
Quando abri os olhos, o velho ainda estava sorrindo.
— Então está feito.
Saí da loja com a sensação de que algo havia mudado. Não sabia se era real ou só fantasia, mas, pela primeira vez em muito tempo, eu queria ver o que aconteceria.
Atrás de mim, quando olhei de relance… a loja já não estava mais lá.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 123
Comments