“Ninguém falou por horas.
As crianças dormiam.
Os homens montavam vigília silenciosa, olhos atentos a cada som do vento.
As mulheres, quebradas em corpo, mas ainda de pé em espírito, partilhavam pão seco e olhares que diziam mais do que qualquer língua poderia.
Eram todos sobreviventes.
Mas ainda não sabiam que seriam algo mais.”
“Eram todos sobreviventes.
Mas ainda não sabiam que seriam algo mais.”
A noite parecia não ter fim.
Na abadia, a única luz vinha de uma fogueira improvisada com restos de bancos quebrados e velas curtas, que tremulavam como se tivessem medo de continuar acesas. As paredes de pedra guardavam a umidade como segredos antigos, e o ar era tão denso que parecia pesar sobre os ombros de todos.
Ninguém falava.
Não por falta de palavras, mas porque as palavras perderam a utilidade diante do que viram, ouviram e carregaram até ali.
O mundo havia colapsado de uma forma que só os olhos deles sabiam descrever.
As crianças dormiam espalhadas sobre colchas remendadas, amontoadas como filhotes, respirando fundo como se aquele sono fosse uma barreira contra o pesadelo real. Algumas murmuravam nomes em sonhos. Outras se encolhiam ao menor estalo da lenha queimando.
Havia uma quietude diferente ali.
Não era paz.
Era o tipo de silêncio que vem após o último grito.
Os homens vigiavam.
Revezavam-se nas entradas da abadia, com facas improvisadas, pedaços de ferro, paus com pregos — como se ainda pudessem proteger algo.
Mas o que restava para proteger?
Cada um deles havia visto o pior do ser humano.
Tinham carregado corpos.
Desenterrado com covas rasas.
Sido forçados a escolher entre fugir ou enterrar os próprios filhos.
Agora, suas mãos tremiam no escuro, não de medo…
Mas de uma raiva que o tempo ainda não tivera coragem de curar.
As mulheres não choravam.
Não ali.
Não diante dos filhos.
Tinham aprendido a calar a dor e engolir o desespero.
Entre elas, algumas haviam sido enfermeiras, outras mães de família, outras ainda adolescentes que não tiveram tempo de ser nada antes da guerra tomar tudo.
Mas todas partilhavam do mesmo gesto ritualístico: dividir o pouco que tinham.
Um pedaço de pão.
Um chá fervido em latas amassadas.
Uma coberta dividida entre três.
Um olhar que dizia “você ainda está viva — e eu também.”
Era ali, naquele gesto mudo, que o Espírito da sobrevivência começava a circular pela abadia.
Uma jovem francesa de vinte e poucos anos passou uma toalha úmida na testa de uma criança polonesa com febre.
A criança sussurrou algo em sua língua, e ela respondeu com um beijo na testa.
Não importava se se entendiam.
A linguagem entre sobreviventes não dependia de vocabulário.
Um soldado russo desertor partiu um pedaço de pão seco e ofereceu ao filho de um engenheiro alemão.
O menino olhou assustado.
Demorou.
Aceitou.
Mastigou devagar.
Depois estendeu a mão de volta — com um botão de casaco como presente.
O soldado riu com o canto da boca.
E guardou o botão como se fosse uma medalha.
No fundo da abadia, Galina sentou-se ao lado de uma das colunas rachadas e segurou o medalhão de sua filha.
Não disse uma só palavra.
Mas seus olhos vagavam por cada criança, por cada mãe, por cada homem em silêncio.
Era como se ela estivesse vendo tudo de fora.
Como se reconhecesse nos gestos deles um padrão que o mundo já ignoraram antes.
Ela sabia.
Eles não estavam ali apenas para sobreviver.
As horas se arrastaram.
A lenha diminuía.
A respiração coletiva parecia virar um único som, como o de um corpo gigante tentando se manter vivo.
Foi então que uma menina — talvez com cinco anos — levantou-se no escuro.
Olhou em volta.
E perguntou, em voz baixa:
— Aqui é o céu?
Um riso abafado escapou de uma mãe que não sabia mais como responder à inocência.
A menina sorriu, satisfeita, e deitou-se de novo.
Naquele instante, alguma coisa mudou.
Não se ouviu um trovão.
Não surgiu uma estrela.
Mas dentro de cada um, algo despertou.
Eles não eram mais apenas fugitivos.
Havia um laço invisível sendo tecido.
Fio por fio, olhar por olhar, gesto por gesto.
E no coração de cada sobrevivente, surgia uma ideia sem nome:
“Se sobrevivemos…
Não pode ter sido só por acaso.”
Os sobreviventes não sabiam que, dali a décadas, aquela noite seria lembrada como o renascimento da justiça.
Não sabiam que seus netos carregaram marcas, e que os descendentes deles atuariam nas sombras como filhos do Espírito.
Mas o Espírito… já estava ali.
Presente no olhar de quem não desistiu.
Presente na partilha silenciosa de quem perdeu tudo, menos a empatia.
E naquele eco mudo, nascia a centelha da Ordem.
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Atualizado até capítulo 45
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