O Reencontro dos Sobreviventes
“Eles não se reuniram para fugir do mundo.
Reuniram-se para enfrentá-lo nas sombras.”
Esta obra é fictícia. Mas partes dela foram inspiradas em dores que o mundo permitiu acontecer.
Alpes Centrais, inverno de 1944.
A guerra ainda não havia terminado nos jornais.
Mas para aqueles que chegavam, passo após passo, cobertos de neve e silêncio, ela já havia mudado de forma.
Agora, ela vivia dentro deles — um eco nos ossos, um peso na alma, um tremor que nem o fogo curava.
A abadia era tudo o que restava.
Uma construção antiga, esquecida, erguida séculos antes por monges que também fugiam de um mundo em colapso.
Os vitrais, antes coloridos, estavam estilhaçados.
As paredes, enegrecidas pela umidade e pelo abandono.
Mas ainda assim… se mantinha de pé.
Naquela noite de neve densa, um a um, os sobreviventes foram chegando.
A primeira família veio da França.
O pai mancando, com o paletó coberto por costuras feitas à mão e o rosto sujo de fuligem.
A mãe carregava nos braços uma criança magra demais para sua idade.
Trazia um broche escondido no sutiã — última lembrança da irmã que ficou para trás.
Chegaram calados.
Apenas olharam ao redor e sentaram-se próximos à lareira improvisada, sem fazer perguntas.
Pouco depois, outra família apareceu.
Vieram da Polônia.
O menino tinha os olhos arregalados e a respiração ofegante.
A avó trazia escondido sob o casaco um livro de orações com páginas rasgadas.
E no fundo da bolsa, uma carta que nunca foi enviada.
As portas da abadia não estavam trancadas.
Apenas entreabertas — como se esperassem por eles.
A terceira família veio da Alemanha.
Mas os olhares desconfiados denunciavam: eram judeus alemães.
O pai, um engenheiro, escondera a família por dois anos num porão.
Agora, trazia consigo apenas um relógio de bolso quebrado e o silêncio.
Quando viu as outras famílias, hesitou.
Mas a esposa, com a criança no colo, caminhou direto até o altar e ajoelhou-se.
Não para rezar.
Mas para agradecer por estar viva.
Da estrada de pedras cobertas por neve, ouviu-se o som de passos arrastados.
Era a quarta família.
Vieram dos Países Baixos.
Chegaram com dois irmãos órfãos que haviam escapado por milagre de uma blitz.
Foram acolhidos por um casal que jamais os conhecera antes.
Agora, estavam ali como se sempre tivessem pertencido uns aos outros.
A quinta família, da Itália, chegou trazendo consigo algo raro: música.
O pai era violinista.
Mesmo fugindo, trouxera o instrumento enrolado num cobertor.
Ao entrar, não disse uma palavra.
Apenas colocou o violino em um canto seco e sentou-se.
A mãe tinha os olhos marejados, mas firmes.
Carregava uma menina dormindo em seu colo, com uma fita vermelha no cabelo.
Logo depois, uma sombra atravessou o umbral da porta.
A sexta família.
Do Japão.
Um avô, uma neta e um jovem enfermeiro.
Tinham viajado durante semanas, enfrentando o preconceito, a barreira da língua, a solidão do exílio.
O velho caminhava devagar, mas firme.
Trazia no peito uma pequena bolsinha com caracteres bordados — um nome que jamais esqueceria.
A sétima família veio da Grécia.
A mulher guiava o marido cego pela mão.
Trazia três filhos.
E na sacola de couro, pedaços de cerâmica com símbolos antigos.
— “De onde viemos, quebraram até os templos,” — sussurrou ela, ao cruzar o limiar da porta.
A oitava, da Ucrânia, era a menor:
apenas uma mulher.
Galina.
Ela caminhava sozinha, com a pele ferida pelo frio, os cabelos presos num lenço cinzento e um peso invisível nos ombros.
Carregava uma criança nos braços — não respirava mais.
Mas ela a embalava como se ainda estivesse viva.
Ninguém ousou perguntar.
Apenas abriram espaço e permitiram que ela se sentasse próxima à parede de pedra, em silêncio.
Seu olhar dizia mais que qualquer fala.
Vieram, então, os ingleses.
A nona família.
O pai trazia uma bengala feita de madeira polida.
A mãe, um bebê envolto em panos bordados com brasões antigos.
Apesar da compostura, traziam consigo a marca da humilhação de terem sido esquecidos por aliados e vendidos em acordos silenciosos.
A décima família veio da Rússia.
Dois irmãos, soldados desertores, e uma prima muda.
Ela havia parado de falar após o sumiço da mãe, levada durante um interrogatório.
Trazia no pescoço uma cruz escondida.
E nos olhos, fogo.
A décima primeira família veio do Brasil.
Sim, havia brasileiros.
Um médico voluntário, sua esposa enfermeira e duas meninas pequenas que haviam sido retiradas de um campo de transição na fronteira da França.
Foram os únicos a entrarem oferecendo comida.
Trouxeram farinha, raízes e água fervida.
A décima segunda…
Demorou.
Vieram dos Estados Unidos.
Uma jornalista negra e um artista plástico judeu.
Ela havia documentado o horror que vira, até que seu trabalho se tornasse proibido.
Ele perdera a família inteira em Auschwitz.
Agora, caminhavam juntos.
Ela carregava uma câmera escondida sob o casaco.
Ele, um caderno de desenhos.
Ao entrarem, não disseram nada.
Apenas se olharam com os outros.
E sentaram-se.
Naquela noite, ninguém falou.
Mas todos se reconheceram.
Não por nomes.
Nem por idiomas.
Mas pelo vazio que carregavam no peito.
A abadia, antes ruína, agora pulsava.
Como se as pedras sussurrassem:
"Vocês chegaram. Agora começa."
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Atualizado até capítulo 45
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