Acordei antes da cidade.
Ainda era cedo, mas as casas ao redor já começavam a se mexer: janelas abrindo, cortinas se movendo, gente preparando café com cheiro de baunilha e normalidade.
Minha casa era igual a todas as outras da rua.
Grade branca, grama aparada, varanda discreta. Um bairro onde as pessoas passeiam com o cachorro às seis da manhã e fazem bolo em forma de coração nos aniversários infantis.
Perfeito para um homem que precisa parecer comum.
Inofensivo.
Terminei de preparar meu café. Preto, forte, sem açúcar, igual no Rio.
Saí para a frente de casa com a caneca na mão, sem camisa.
O ar gelado bateu nas costas como um lembrete: aqui é outro mundo.
Os vizinhos estavam por perto. Um casal empurrava um carrinho de bebê, acenou com educação, mas sem sorrir.
Na varanda da frente, uma mulher com rabo de cavalo e roupa de yoga me analisava por cima da xícara, olhar de quem deseja, mas tem medo.
Dois garotos de bicicleta passaram devagar.
A vizinhança não gostava de pele exposta, cicatrizes visíveis ou tatuagens que diziam mais do que palavras.
Respirei fundo e vesti a blusa.
— Calma. Você prometeu. — murmurei para mim mesmo.
Não se nega sangue, não se nega briga.
Mas, por ela…
Por eles…
Elisa e Ethore vão nascer em alguns meses. Me tornar o tio que eles merecem significa fazer tudo certo.
Terminei o café, entrei no carro.
Ao sair da garagem, os olhares ainda me acompanhavam.
No celular disquei para Ester, o contato que antes foi ruim, agora é a ponta de esperança, ela acredita em mim.
— Estou indo para meu primeiro dia. — enviei um áudio.
— Você consegue, estou torcendo, quero te ver no nascimento, se cuide por nós. — ela respondeu, guardei o celular e foquei no plano.
Baixei o vidro e forcei um contato.
— Bom dia.
A mulher respondeu, o homem balançou a cabeça colocando a mão em sua cintura.
Como se esperasse que eu errasse cedo ou tarde.
Segui pelas ruas limpas, avenidas arborizadas, cruzando a linha invisível que separava os bairros perfeitos da parte esquecida da cidade.
Atravessando o Harlem, os prédios foram mudando. O concreto mostrava rachaduras, as calçadas estavam sujas, e o glamour nova-iorquino evaporava a cada quarteirão.
Ali, ninguém sorria por educação.
Ali, ninguém disfarçava quem era.
Era lá que ficava o prédio da reabilitação.
Três andares de tijolo encardido. Sem recepção. Sem tapete. Sem promessas.
Estacionei.
Matheu me disse: “Você precisa provar que pode. Que quer. Não por mim. Por Ester. Pelas crianças.”
Ele não se envolveu com o dinheiro. Disse que era meu. Que fizesse o que quisesse.
E eu fiz: doei metade. Peguei o restante e comprei o necessário. Casa, carro, documentos e o que mais fosse necessário.
Tudo para parecer limpo, funcional, pronto.
Só que por dentro... ainda tem lama.
Olhei para a entrada do prédio. Respirei fundo.
É hoje.
O primeiro passo para provar que posso ser alguém confiável, ou pelo menos calar a boca de alguns.
Entrei. E o silêncio me engoliu.
O chão do corredor rangia.
Ou era coisa da minha cabeça?
A recepção era pequena, sufocada por arquivos velhos e uma máquina de café que parecia cuspir ferrugem.
Atrás do balcão, uma menina nova, cabelo ruivo preso num coque bagunçado, uniforme um número menor do que deveria.
Ela me olhou.
Não como se olha um paciente.
Olhou como quem avalia... um risco.
Medo e desejo. Sempre caminham juntos.
Principalmente com caras como eu.
Falei o nome. Ela demorou meio segundo a mais para digitar.
— Sala 3, segundo corredor à esquerda. — disse, sem me encarar mais.
Segui.
O lugar tinha cheiro de problema, era limpo, como se quem trabalhasse aqui quisesse trazer beleza ao podre.
Alguns caras já estavam na sala, espalhados em cadeiras de plástico, mal encostando nas paredes.
Olhares desconfiados.
Dois me ignoraram. Um outro, o mais falante, se ajeitou na cadeira e apontou o queixo.
— Novo?
Assenti.
— Sou Trey. Quarto banco, canto esquerdo. Já tive três recaídas, mas voltei. Sabe por quê?
Não respondi.
Ele riu sozinho. Gente que fala demais sempre sente falta de plateia.
— Por causa dela. — apontou com os olhos. — A psicóloga. Amanda. Uma delícia. Juro por Deus. Eu só venho por ela. Sabe aquelas mulheres que parecem que te curam só de olhar? Então... dá vontade de cair só para ela cuidar de novo.
Fiquei quieto, mulheres eu tive quem queria, não é isso que procuro e não penso em me envolver de forma alguma, só fazer essa porra destes seis meses e receber a liberdade, só depois disso posso voltar para minha vida.
Só murmurei:
— Daniel.
Ele deu um risinho de canto.
— Nome de arcanjo, né? Vai ver é isso que ela gosta, porque nós ela não olha ninguém, eu entendo o Arnold ter perseguido ela, a mulher parece feita em pecado, uma tentação.
Trey voltou a focar na porta, voltou a esperar sua entrada.
Eu não.
Eu fiquei olhando a sala. Calculando saídas. Analisando os rostos, sabia que em alguns grupos eu era o assunto, e controlar o sangue é meu objetivo.
Todos ali tinham algo que eu reconhecia.
Olhos marcados. Vícios tatuados na pele. Fantasmas nos ombros.
E ainda assim...
Quando ela entrou… Tudo parou.
Amanda.
Não era uma “delícia”.
Não.
Era descomunal.
Postura ereta, roupa sóbria, cabelo longo solto, lábios convidativos. Voz firme. Olhar que atravessa. Ela não sorria para agradar. Não piscava para manipular.
Ela te olhava como se soubesse.
Tudo. Antes mesmo de você dizer.
E isso… era perigoso.
Porque se ela olhasse fundo o bastante, podia ver coisas que ninguém devia ver.
Trey assobiou baixo, quase reverente.
— Falei.
Eu virei o rosto.
Mantive o corpo firme. O sangue gelado.
E disse a mim mesmo:
Fica longe. Ela é luz. Você é o fim de tudo que queima.
— Bom dia. — ela falou sentando na mesa de frente para nós. — bom ver tantos rostos recorrentes, sinal de que mesmo caindo ainda tentam, — me olhou. — temos um rosto novo hoje, Daniel? Quer se apresentar?
Eu quis dizer, não é buscando cura, eles estão buscando te ver, e com razão, um corpo deste, essa boca, esse sorriso, deveria estar em um lugar melhor.
— Não. — foi só o que disse abaixando a cabeça, atrair atenção para mim não é o objetivo.
Ela sorriu, ainda me analisando e voltou para a turma toda, aquela voz doce, aquele tom aveludado, a perna pressionando foi o estopim, ela ficar excitada foi me deixando excitado, foi mais forte que eu, acabei levantando e saindo da sala, segui para o banheiro buscando respirar e abaixar a "tensão".
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Atualizado até capítulo 53
Comments
Marilia Carvalho Lima
😲😲
2025-08-03
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