Nasci no Brooklyn, cresci entre buzinas, pombos e vizinhos gritando pela janela. Nova Iorque nunca me prometeu nada, mas sempre entregou demais: caos, pressa, e uma maturidade forçada antes da hora.
Tenho 36 anos, nascida e criada no Brooklyn. Casei cedo, aos 18, engravidei aos 20, Lucas, meu filho, está com 16 agora. Divorciei aos 25, depois de sete anos de casamento. Foi uma escolha difícil, mas necessária. Meu ex marido nunca superou isso, mesmo que viva com várias mulheres, sempre tem um jeito sutil de me provocar quando aparece para buscar o Lucas.
Hoje foi um desses dias.
Lucas, com o seu típico olhar rebelde, abriu a porta da frente com aquela cara de quem não quer papo.
— Mãe, ele vai chegar logo? — questionou com aquele maldito fone, sem prestar atenção real em nada que é dito.
— Calma, ele já deve estar vindo Lucas, sabe que é isso toda semana, seu pai parece gostar de deixar os outros no escuro, ele disse que vinha, mas o atraso você o questiona.
— Você devia ter me avisado antes. Toda vez é a mesma novela.
— Eu aviso, sim. Só não dá para controlar o que ele faz, Lucas.
Enquanto conversávamos, o celular vibrou: mensagem do centro de reabilitação. Uma nova ficha, nome: Daniel Ávila. Brasileiro. Só isso. Nenhuma outra informação.
No meu trabalho como psicóloga, sei que o pouco pode dizer muito. E que, muitas vezes, o silêncio na ficha é o pior sinal.
Tenho coordenado um grupo de apoio a jovens em situação de risco, adolescentes e adultos jovens que tentam sair do buraco dos vícios. A luta é diária, e a taxa de sucesso, baixa. Só uma em cada sete pessoas consegue se manter limpa por mais de um ano.
Mas eu ainda acredito.
Acredito que posso ajudar.
Que posso colar almas partidas.
A psicologia não foi meu plano B.
Foi minha resistência.
Queria entender o que se quebra dentro das pessoas antes que se tornem irreconhecíveis até para si mesmas. Talvez porque, no fundo, sempre tentei colar a minha.
Mas uma coisa é o sonho.
Outra... é a realidade de Nova Iorque.
Atualmente, mais de 450 mil pessoas vivem em tratamento contra abuso de substâncias no estado de Nova Iorque. Só na cidade, são mais de 100 mil em programas ativos — públicos ou privados.
Mas a verdade? A taxa de sucesso sustentado é baixa. Cerca de 15% conseguem se manter limpos por mais de um ano sem recaída.
Só 1 em cada 7.
E ainda assim, continuo tentando.
O grupo que coordeno atende casos considerados de "alta complexidade".
Na prática, isso significa que não conseguimos pagar o bastante para manter segurança no prédio, mas atendemos usuários que já foram internados cinco, seis vezes.
A maioria é jovem. Alguns vieram das ruas. Outros, de famílias ricas e negligentes. E há os que vêm por obrigação judicial, ou por chantagem emocional.
Lucas estava de fones no sofá, mexendo no celular como se o mundo estivesse em segundo plano e, para ele, provavelmente estava.
O interfone tocou. Era ele.
Suspirei, já me preparando.
Desci os degraus do prédio devagar, bolsa no ombro, cabelo preso. No espelho do hall, chequei o batom que não usava para ninguém, mas que ele sempre comentava.
Quando abri a porta da frente, ele já estava ali.
Rocco
Mesmo jeito de sempre: camisa social meio aberta, blazer casual, perfume caro demais para o bairro. Ele sabia que era bonito, fazia questão que todo mundo soubesse também.
— Amanda. — sorriu, do jeito ensaiado que usava desde a faculdade. — Você tá linda.
— Rocco
— Não vai me dar um abraço? — questionou cínico.
— Só vim abrir, não quero abraços, sabe disso, por que tenta?
Ele passou a língua pelos lábios, como se aquilo fosse charme.
Na verdade, era vício em se sentir desejado.
— A gente podia jantar qualquer dia desses, o que acha? Sabe... relembrar os velhos tempos.
— Já me lembro deles o suficiente, obrigada.
Ele riu, aquele riso de quem não sabe ouvir não.
— Ainda tão fria. Isso sempre foi meio sexy em você.
— E você ainda tão previsível. Isso nunca foi.
Lucas apareceu atrás de mim com a mochila nas costas, ignorando os dois.
— Vamos, pai.
Rocco bagunçou o cabelo dele, tentando soar carinhoso. Lucas revirou os olhos.
Antes de entrar no carro, ele se virou para mim mais uma vez.
— Avisa quando quiser conversar. Ainda acho que a gente podia funcionar... agora que você tá mais calma. E, bem — ele fez um gesto vago com a mão — eu sou um homem mais... experiente.
— Você é um homem cercado de mulheres que não significam nada, Rocco. E ainda tenta alcançar o que já perdeu faz tempo.
Entrei no carro sem olhar para trás.
Liguei o motor. Respirei fundo.
Era só mais um lembrete de tudo que precisei deixar para trás para me tornar quem eu sou.
Psicóloga. Mãe. Sobrevivente.
E agora... coordenadora da sessão onde o novo nome da lista espera por mim.
Daniel Ávila.
Sem histórico, sem detalhes.
Pisei no acelerador.
O passado que me tentou reconquistar ficou no retrovisor.
O presente me esperava numa sala com cadeiras em círculo... e feridas demais para esconder.
Quando entrei no prédio não muito bonito, minha amiga me esperava, ela estava terminando seu estágio, não se via atuando em uma área tão precária.
— Entrou um grupo novo, meio barra pesada, — ela falou entregando as fichas, aqui era assim, os mais perigosos vinham cedo, os medianos a noite, os leves? Bem... esses não existiam nesta parte.
— Lisa, tudo bem? Nós vamos resgatar alguns deles amiga, fé na humanidade, vou lá conhecer as feras. — brinquei e ela não riu, mas não importava, era questão de vocação, e eu tinha.
— Você é louca, uma hora vai acabar sendo perseguida por um desses drogados. — ela respondeu, como eu disse, é questão de vocação.
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Atualizado até capítulo 53
Comments
Marilia Carvalho Lima
👏👏
2025-08-03
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