Azar é uma palavra que me acompanha desde cedo, como uma sombra malcriada que se diverte em me empurrar em direção a situações absurdas. E sabe o que é pior? Faz uma semana que sai da casa dos meus pais para tentar ser independente.
Sim, deixei a mansão, funcionários e dormidas até mais tarde para morar num apartamento simples, num bairro bem duvidoso, onde os vizinhos me olham como se eu fosse um ser de outro mundo e as câmeras 24 horas ficam na porta de casa, sentadas em cadeiras de balanço.
Eu não sou do tipo que tropeça uma vez por mês. Eu tropeço em mim mesma, nas calçadas, em sacolas de papel e, se estiver tudo tranquilo demais, provavelmente derrubo um copo d’água em cima de algum equipamento eletrônico de alto valor.
Por isso, quando acordei naquela manhã de domingo com o despertador me xingando em volume máximo e percebi que tinha esquecido a roupa no varal — e que havia chovido à noite — eu já sabia que algo estava no ar.
Tentei contornar o caos. Botei o tênis velho, amarrei o cabelo em um coque torto e saí para o mercado, convencida de que seria só uma ida rápida para comprar leite, café e papel higiênico. Coisas básicas. Sobrevivência. Mal percebi que estava com uma meia de cada cor até chegar ao caixa.
Até aí, tudo bem. Quer dizer… quase tudo bem. Foi quando a sacola de papel — aquela ecológica, que promete ser resistente e falha no momento mais crucial — decidiu se dissolver na calçada da esquina, bem no meio da rua movimentada, que percebi: era um daqueles dias.
O litro de leite rolou direto para os pés de um desconhecido. O pacote de papel higiênico saiu saltitando pela calçada como se estivesse fugindo de mim. E o pote de café instantâneo se espatifou no chão como se quisesse encenar uma morte dramática.
As pessoas me olhavam como se eu fosse um experimento social mal-sucedido. E ali estava eu, abaixada, tentando resgatar minha dignidade junto com os últimos rolos de papel higiênico, quando ouvi a voz.
Aquela voz.
— Eva Santiago...
Ergui os olhos devagar, já temendo o universo. E CLARO.
Era Lucas.
Meu ex-namorado. O motivo de eu ter bloqueado playlists inteiras. Estava parado ali, com a mesma jaqueta de couro cafona, aquele sorrisinho de quem se acha irresistível, e um café caro na mão.
— Só faltava você —, murmurei, como quem invoca uma praga.
Ele arqueou uma sobrancelha, visivelmente satisfeito com o encontro.
— Pra salvar o seu dia?
Respirei fundo, peguei o último rolo de papel que ainda lutava pela liberdade e me levantei.
— Não. Pra desgraça ficar completa.
Ele soltou uma risada alta demais. Algumas pessoas olharam. Eu quis desaparecer.
— Você sempre foi dramática, Eva.
— E você sempre foi... Você — retruquei, secando a mão na calça. — O que é pior.
Ele me ofereceu o café, como se isso apagasse anos de decepção e sarcasmo passivo-agressivo. Recusei com um olhar.
— Ainda está com aquela banda de rock que só tem três músicas no Spotify? — perguntei, recolhendo o que sobrou da minha tentativa de fazer compras.
— A gente tem cinco agora, e...
— Que ótimo. Mais duas que ninguém pediu.
Ele riu de novo. E por um segundo, apenas um segundo, eu quase ri também. Porque ele sempre teve esse talento irritante: fazer piada no meio do desastre. Talvez por isso eu tenha gostado dele no início. Ou talvez porque, na época, eu ainda acreditava que amar alguém bastava.
— Você continua igual — ele disse, por fim, dando um gole no próprio café. — Feroz, sarcástica, e meio amaldiçoada.
— E você continua com esse ego inflado achando que tudo gira ao seu redor.
— Às vezes gira.
Revirei os olhos, abracei o leite sobrevivente como quem abraça um troféu e comecei a me afastar.
— Foi bom te ver — ele disse atrás de mim.
— Duvido — respondi, sem virar. — Mas obrigada pela parte que me toca.
Voltei para casa com os cabelos bagunçados pelo vento, a sacola improvisada num pedaço de caixa de cereal e a sensação de que, mesmo nos piores dias, eu ainda sabia como manter a língua afiada.
Azar ou não, eu ainda era Eva Santiago. E isso, no fim das contas, me dava uma estranha forma de controle. Mesmo quando tudo o mais estava desmoronando.
Subi os dois lances de escada do prédio antigo com o leite sob o braço, o papel higiênico esmagado contra o peito e a alma pingando sarcasmo. O prédio não tinha elevador, os corredores cheiravam a desinfetante vencido e o aquecedor fazia um barulho que me dava a impressão de estar dividindo apartamento com um trator em crise existencial. Mas ainda assim… era meu.
O apê tinha dois quartos minúsculos, uma sala que mais parecia um corredor ampliado e uma cozinha onde mal cabiam duas pessoas sem dançarem um tango acidental. Ainda assim, havia algo libertador em girar aquela chave, empurrar a porta com o quadril e entrar no meu espaço — mesmo que, naquele momento, ele estivesse cheirando a café queimado e derrota emocional.
Larguei as compras, se é que podiam ser chamadas assim, na bancada da cozinha, respirei fundo e olhei ao redor. A luz da manhã entrava torta pela janela com venezianas quebradas, e uma das plantas que eu tentava desesperadamente manter viva parecia estar escrevendo sua carta de despedida.
Suspirei.
Liberdade vinha com contas, barulho dos vizinhos e a constante dúvida se a torneira da pia estava ou não conspirando contra mim. Ainda assim, não havia ninguém dizendo que cor de cortina eu devia ter. Ninguém me perguntando se já tinha enviado meu currículo para os contatos “certos”. Ninguém medindo meu valor por quantas vezes apareci sorrindo em jantares sociais fingindo ser alguém que eu não era.
Meu celular vibrou. Mensagem da Vanessa.
“Tô levando croissants e café decente. Você merece um pouco de dignidade depois da sua tragédia matinal.”
Sorri. Vanessa tinha o timing emocional de uma santa pagã: sabia exatamente quando aparecer e quando sumir. E sempre trazia carboidratos, o que automaticamente a colocava no topo da minha lista de seres humanos preferidos.
Dez minutos depois, ela bateu na porta com um sorriso largo, óculos escuros exagerados e uma sacola de padaria francesa que custava mais do que meu mês de aluguel dividido por três.
— Então... soube que o universo resolveu dar mais uma rasteira? — ela disse, entrando sem pedir licença, como sempre.
— O universo e o Lucas. Juntos, como uma banda vinda do inferno.
Ela gargalhou, já tirando os croissants da embalagem e colocando o café numa caneca minha com estampa de esquilo que ela odiava.
— E o papel higiênico? —
— Um morreu atropelado. Dois fugiram. Um sobreviveu.
— Você é uma heroína.
— Ou uma piada ambulante.
Nos sentamos no chão da sala, porque o sofá ainda não tinha chegado e a única coisa que separava a gente do piso gelado era um tapete que ganhei da minha irmã. Ainda assim, havia algo poeticamente certo naquele momento: duas amigas, croissants, risadas e uma cidade inteira lá fora, esperando a próxima oportunidade de nos testar.
Vanessa me olhou com mais ternura do que ironia dessa vez.
— Você sabe que fez a coisa certa, né? Sair da casa dos seus pais, buscar o seu espaço...
— Às vezes parece burrice — admiti. — Outras, parece liberdade.
— É os dois. Mas é sua burrice. Sua liberdade. E isso muda tudo.
— Mas por que não está num lugar melhor? Não entendo isso.
— É o que eu pude pagar no momento com minhas economias. Eu não quero depender dos meus pais à vida toda, sabe? Eu não quero ser como os meus irmãos que conquistam as coisas com base no dinheiro dos nossos pais. Quando sai, eu vim em busca da liberdade, e de nunca ouvir um "tudo que você tem hoje, foi construído com o meu dinheiro".
Sorri. Mesmo que meu dia tivesse começado com desastre e ex-namorado, ainda assim, ali estava eu. Com meus erros, meus acertos e meu croissant amanteigado.
Independente. Azarada. Mas firme.
E, no fundo, talvez isso já fosse o início de algo melhor. Mesmo que eu ainda não soubesse o quê.
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Atualizado até capítulo 58
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