Nova Iorque, 7h43 da manhã
Dizem que a arquitetura é a arte de dar forma aos sonhos — transformar linhas em abrigo, ideias em espaços, matéria em significado. Sempre acreditei nisso. E, por muito tempo, me agarrei a essa ideia como se ela fosse uma tábua de salvação. Como se construir algo sólido fora de mim fosse suficiente para acalmar as rachaduras internas que, vez ou outra, ameaçam romper a fachada.
Meu nome é Eva Santiago. Tenho vinte e quatro anos, recém-formada em Arquitetura pela Universidade de Columbia, com louvor e sem luxo. Entrei com bolsa integral, permaneci graças a incontáveis madrugadas em claro e saí com calos nas mãos e olheiras permanentes. Enquanto alguns colegas passavam os verões estagiando em escritórios familiares em Paris ou Milão, eu segurava três empregos e ainda dava um jeito de entregar as pranchas de projeto com perfeição quase obsessiva. Acordava cedo demais, dormia tarde demais, comia mal e sonhava alto. E mesmo assim, não foi suficiente para arrancar dos meus pais mais do que um aceno de cabeça e um comentário sem entusiasmo do tipo “era o mínimo, Eva”.
Eles nunca disseram que estavam orgulhosos. Talvez nunca digam. Cresci ouvindo que ser boa não bastava — eu precisava ser impecável. E mesmo quando era, ainda assim não parecia suficiente.
Ser a filha do meio vem com uma maldição silenciosa. Não sou a primogênita, sobre quem recaem as maiores expectativas sociais e o peso das tradições. Tampouco sou o caçula, cercado por permissividades e desculpas prontas. Sou a que fica no intervalo — aquela que deve ser exemplo, equilíbrio, o ponto de apoio quando tudo ao redor ameaça ruir.
Minha irmã mais velha, Camila, é o retrato da mulher perfeita em moldura de vidro. Casou cedo, com um homem influente, bonito, que posa para colunas sociais como se a vida fosse um comercial de perfume. O que ninguém vê são os hematomas invisíveis que ela carrega na alma. O controle, o silêncio, a tensão em cada respiração quando ele está por perto. Ela tenta manter a imagem impecável, porque escândalo é inaceitável para quem pertence a uma “boa família”. Ela sorri nas festas, usa vestidos caros e evita falar demais. Nunca diz que está infeliz, mas eu a conheço bem demais para acreditar em seus silêncios.
Já Mateo, meu irmão mais novo, é o oposto de tudo o que meus pais esperavam. Rebelde, inconstante, com talento para se envolver com as pessoas erradas e aparecer com mais dívidas do que explicações. Tem um coração enorme, que ele tenta esconder sob sarcasmo e tatuagens mal pensadas. Já tentou de tudo — música, gastronomia, criptomoedas, um canal de vídeos sobre teorias da conspiração — e fracassou em todos com igual intensidade. Meus pais dizem que ele é uma decepção. Eu sei que ele só está perdido. Mas não posso salvá-lo.
Assim, entre o casamento de fachada da minha irmã e o caos adolescente prolongado do meu irmão, sobrou para mim o papel da filha que não dá trabalho. A que estuda. A que se comporta. A que sempre diz “sim, senhor” e “obrigada, mãe”. A que aprendeu a apagar a própria dor para não pesar o ambiente. A que só chora no chuveiro.
Mas mesmo dentro desse papel, sempre tive ambição. Desde criança, eu via os prédios da cidade como promessas. Linhas verticais que pareciam me convidar a subir. A ser mais. A construir algo maior do que a história que me foi dada. Por isso, desde os quinze anos, eu sabia que queria ser arquiteta. E não qualquer arquiteta — queria deixar minha marca no mundo. Queria projetar espaços que mudassem vidas.
Durante a faculdade, segui esse propósito como se fosse um mantra. Fui a primeira a chegar e a última a sair do ateliê. Pegava os piores horários de estágio, aceitava tarefas que ninguém queria e ainda revisava os projetos dos outros para ganhar algum dinheiro extra. Fiz maquetes à mão com precisão cirúrgica, estudei cada autor, cada movimento, cada mas, porqueão porque me pediam, mas porque eu precisava ser impecável. Porque talvez, se eu construísse algo perfeito o suficiente, meus pais olhariam para mim da mesma forma que olham para os prêmios na estante do meu cunhado — com orgulho.
A ligação veio numa manhã cinzenta, quando eu estava organizando currículos numa mesa de cozinha emprestada no apartamento minúsculo que divido com duas amigas. Um número desconhecido. Uma voz polida, profissional. Meus dedos tremiam enquanto anotava o endereço e o horário da entrevista.
Mas como nada dura para sempre, a minha paz também não durou, e eu senti isso quando papai avisou que queria todos reunidos durante o café da manhã.
Meu pai estava sentado à cabeceira, com sua expressão de sempre: séria, contida, e ligeiramente entediada com tudo que não envolvesse política ou futebol. Ele só olhava para mim quando alguém mencionava a faculdade — e mesmo assim, seu olhar não passava da superfície, como se estivesse avaliando uma parede recém-pintada: bonita, funcional, mas nada surpreendente.
Camila chegou com o marido, Marco, vinte minutos atrasada, com um vestido de seda azul-marinho que não escondia o quanto ela havia emagrecido nas últimas semanas. Ela carregava um sorriso artificial preso no rosto, como um grampo de cabelo que já não serve, mas você insiste em usar. Marco entrou como sempre entra: falando alto demais, rindo demais, apertando as mãos com força suficiente para marcar território.
Ele me chamou de “a arquiteta da família” e piscou, como se o apelido tivesse algum charme. Eu sorri de volta com todos os dentes e engoli o desconforto. Camila ficou em silêncio. Não tocou na comida.
Mateo apareceu no meio da refeição, esbaforido, com o boné virado para trás e um hematoma roxo no maxilar. Mamãe soltou um suspiro alto, como quem já espera o pior. Papai nem ergueu os olhos.
— O que foi agora? — perguntei, sem conseguir disfarçar a irritação.
— Nada demais, só uma briga besta — respondeu ele, afundando-se na cadeira como um adolescente reprovado. — Com um cara idiota no bar.
— Que bar, Mateo? Você está em condicional, pelo amor de Deus — disse Camila, deixando o garfo cair no prato com um estrondo. Marco imediatamente a olhou, como se ela tivesse cometido um crime por falar mais alto que o aceitável.
— Não foi nada, já falei — ele rebateu. — O cara encostou na Jéssica, eu fui tirar satisfação. A polícia chegou, mas nem me levaram.
Mamãe levou as mãos ao rosto e murmurou uma prece. Papai olhou para o teto, como se a culpa fosse das telhas. Eu senti o nó na garganta apertar.
— Você tem ideia do que poderia ter acontecido? — sussurrei, tentando manter o tom baixo. — Se te pegam, se te levam de novo, não vai ter ninguém pra...
— Chega, Eva — cortou meu pai, sem me encarar. — Já basta.
Foi nesse momento que Marco limpou a garganta e disse, com a naturalidade de quem comenta o tempo:
— A gente podia resolver isso com uma internação. Ou um tratamento intensivo, sei lá. Ele precisa de algo sério.
Camila congelou. A tensão entre os dois era palpável. A taça de vinho dela tremeu levemente na mesa.
— Eu disse que ele está bem — ela afirmou, em voz baixa, mas firme.
— Você diz isso há dois anos, amor.
Ela o fuzilou com os olhos. Mamãe mexia o guardanapo como se fosse uma toalha de altar. Papai continuava imóvel, como se não estivesse ali.
— Eu cuido do meu irmão — Camila declarou. — Do jeito certo.
— O jeito certo não está funcionando.
O silêncio que se seguiu foi tão espesso que dava para cortá-lo com uma colher. Eu me levantei para pegar mais água e fugir por trinta segundos do clima que ameaçava desabar como concreto mal curado. Quando voltei, ninguém falava. Camila estava com os olhos fixos no prato, Marco mexia no celular, e Mateo tamborilava os dedos na mesa, nervoso.
Aquela era a minha família. Um campo minado coberto por porcelanas e bons modos. E eu, como sempre, tentando ser o cimento que mantém tudo de pé.
Foi só no final da refeição, quando os ânimos haviam baixado e mamãe insistia para que levássemos potes de lasanha para casa, que me lembrei de dizer:
— Eu tenho uma entrevista segunda-feira.
Todos pararam por um instante.
— Em um escritório grande. Bem grande.
Meu pai ergueu as sobrancelhas, surpreso, talvez pela primeira vez naquela tarde.
— Grande quanto?
— D'Angelo & Marchand Architects.
Mamãe sorriu, breve, como se quisesse que eu soubesse que, apesar de tudo, estava satisfeita com a notícia.
— Vai com roupa sóbria — ela disse, automática. — Não exagera no perfume.
— Leva currículo impresso — completou meu pai.
Camila me olhou e, por um segundo, seus olhos brilharam.
— Você vai conseguir. Você merece.
Mateo apenas murmurou:
— Que inveja.
E, por um momento, eu deixei que aquilo me aquecesse por dentro. Mesmo que fosse breve. Mesmo que tudo estivesse por um fio, como sempre. Eu me permitiria acreditar que talvez aquele fosse o início de algo diferente.
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Atualizado até capítulo 58
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