O Testamento da Sombra

O mundo parecia ter desacelerado desde que Noa começara a questionar as lacunas da sua própria existência. Naquela manhã cinzenta, ele se via andando sem rumo pelo centro da cidade, com a carta de convocação para a leitura do testamento ainda amassada no bolso do moletom. Os detalhes da carta não faziam sentido. Por que ele, um jovem comum, seria chamado para algo relacionado à família Valmont — uma linhagem que ele só conhecia pelos escândalos noticiados?

O endereço o levou até um prédio antigo, de arquitetura neoclássica, onde funcionava um antigo cartório adaptado para assuntos nobiliárquicos. Ao entrar, sentiu o cheiro de papéis envelhecidos, madeira polida e a pressão invisível de um passado que não era seu… ou ao menos ele achava que não era.

Na sala principal, uma mulher elegante o recebeu. Usava óculos de armação dourada e um tailleur bege. Seus olhos o analisaram com um tipo de reconhecimento velado.

— Noa, certo? — perguntou com um sorriso controlado.

Ele assentiu, engolindo seco.

— Sente-se. Há algo que você precisa ouvir.

Quando a gravação começou, a voz que ecoou dos alto-falantes antigos fez seu corpo gelar. Era uma voz que ele não conhecia… mas que mexia com ele. Firme, direta, com um toque de dor escondido nas entrelinhas. Era Ícaro.

— “Se você está ouvindo isso, é porque o passado não pôde mais ser ignorado. Nem tudo foi contado. Nem tudo pode ser apagado. Meu nome talvez não signifique nada pra você agora, mas… nós temos mais em comum do que imagina.”

Noa fechou os olhos. Uma memória veio como um raio: uma vez, quando criança, ele viu um homem discutindo com sua mãe, uma mulher de olhos verdes intensos, na porta de casa. Ele nunca entendeu o que foi aquela cena. Depois daquele dia, sua mãe ficou estranha. Mais distante.

A mulher do cartório estendeu a ele um envelope com o nome “Lia” escrito em letras cursivas.

— Isso foi deixado com instruções específicas. Disse que quando chegasse a hora, você entenderia.

Ao abrir o envelope, Noa encontrou uma foto antiga: Ícaro, em uma festa elegante, sorrindo ao lado de uma mulher muito parecida com sua mãe, mas mais jovem. Atrás da foto, uma data… e um bilhete escrito à mão: “Ela desapareceu naquela noite, mas deixou algo que nenhum ouro apaga.”

O chão de Noa balançou. A conexão era impossível de ignorar. Seria ele o legado daquele desaparecimento? O “algo” mencionado no bilhete? A dor no peito apertou. Se Ícaro era realmente seu pai, tudo o que ele achava saber sobre si mesmo estava prestes a ruir.

— Isso muda tudo — murmurou, ainda olhando a imagem.

— E ainda é só o começo — disse a mulher com um brilho estranho nos olhos.

Noa saiu do cartório desnorteado. A cidade seguia seu ritmo, buzinas, vozes, movimento — mas dentro dele, o silêncio era ensurdecedor. Cada passo que dava era como se estivesse invadindo uma história que nunca teve permissão pra conhecer.

Chegando em casa, ele trancou a porta, jogou a mochila no chão e ficou encarando o espelho por longos minutos. Começou a reparar nas próprias feições. A linha da mandíbula, os olhos — haveria mesmo alguma semelhança com Ícaro? Com a mulher da foto? A dúvida agora era uma presença constante.

Ligou o som antigo que herdara do avô, e uma melodia suave começou a tocar. Precisava de calmaria. Mas, quando foi guardar o envelope dentro de uma caixa, notou um papel dobrado entre os documentos.

Era mais uma carta. Curta. Escrita à mão.

— “Se um dia você descobrir, me perdoe. Mas o mundo onde vivíamos não permitia escolhas fáceis. Você foi o preço da minha sobrevivência. — L.”

Noa caiu sentado no chão, com o papel nas mãos. Não sabia se chorava, gritava ou ria. Era um erro? Um castigo? Ou o início de algo maior que ele mesmo?

Do lado de fora, a chuva começou a cair. Pesada. Como se lavasse a cidade inteira. Mas dentro de Noa, o peso só aumentava. Ele precisava de respostas. E agora, ele não iria descansar até encontrar cada uma delas.

E mesmo sem saber ainda, ele estava mais perto da verdade do que jamais esteve.

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