Salvador, 1996.
O sol mal tinha nascido direito, mas o calor já começava a pintar o céu com tons dourados. O cheiro de maresia ainda se misturava com o do pão recém-saído do forno, e pelas ruas de paralelepípedo do bairro da Liberdade, a cidade acordava devagar, no ritmo baiano.
Dora caminhava apressada, segurando as alças da bolsa surrada de lado. Seu uniforme de padaria estava limpo, mas gasto — como quase tudo que ela usava. Ainda assim, ela andava com postura firme, o olhar sonhador de quem tinha algo grande dentro do peito.
Chegando à Padaria Dois de Julho, já dava pra ouvir a voz de Dona Joana, a chefe e figura quase materna, gritando lá de dentro:
— Ô menina, corre que o pão tá saindo e os clientes já tão na porta!
Dora riu sozinha e entrou.
— Bom dia, Dona joana!
— Bom dia nada! Bora, que hoje é quarta, dia de feira, o povo vem faminto!
Dora amarrou o avental, lavou as mãos e já começou o corre. Servia o povo com sorriso no rosto, trocava dois dedos de prosa com cada freguês, e sonhava — entre uma fornada e outra — com o futuro. Seu restaurante. Um lugar pequeno, mas com comida boa, feita no capricho. Pratos com gosto de infância, de casa de vó, com tempero de raiz baiana.
Mas o salário da padaria era curto, e cada moedinha que sobrava, ela guardava num pote de vidro em casa, escrito à mão:
“Sonho de Dora — Restaurante”
Já perto das 10h, no meio do burburinho de clientes, quem surge na porta com o cabelo preso num turbante colorido e um sorriso travesso?
— Letícia...
Letícia era sua amiga desde a infância, crescerão juntas e hoje em dia são quase irmãs
— Ô minha filha, que calor da moléstia, viu? — disse Letícia, abanando o rosto. — Tô passando só pra te dar um recado que vai mudar sua vida.
— Oxi, que é agora? — Dora riu do jeito descontraído de sua amiga enquanto entregava um pão doce pra uma senhora.
Letícia chegou mais perto do balcão e sussurrou, com os olhos brilhando:
— Vai ter pagode hoje à noite no Bar do Nelsão, ali no final da ladeira. E não é qualquer pagode, não. Vai ter o grupo Swing da Cor, aquele que a gente ama!
Dora arqueou a sobrancelha.
— Hoje? Letícia, pelo amor… você sabe que eu tô guardando dinheiro, né? Um chopinho ali, um acarajé aqui… Quando vejo, já gastei vinte reais que poderiam ir pro meu potinho.
Letícia cruzou os braços, indignada.
— Dora, você trabalha igual uma condenada! Você é a mais nova daqui e vive que nem uma mulher de quarenta. Vai me dizer que uma noite vai atrapalhar teu sonho?
Dora respirou fundo. O cheiro de pão quentinho enchia o ar, misturado com o som das conversas e o tilintar das moedas no caixa.
— Eu sei que é só uma noite… mas cada noite conta.
Letícia não se deu por vencida.
— E cada alegria também conta, Dora. Você não vai abrir esse restaurante triste, vai? Vai abrir com as lembranças de uma juventude vivida. A gente dança, ri, volta cedo. Eu te pago o primeiro copo. Por favor…
Dora olhou pra amiga e pensou. Lembrou das noites sozinha contando moedas, dos cadernos com receitas rabiscadas, do cansaço no corpo. Mas também lembrou de como era bom ouvir um pandeiro, sentir o corpo solto, rir até a barriga doer.
— Tá bom, Letícia. — disse ela, enfim, com um meio sorriso. — Mas só até meia-noite. Depois disso, viro abóbora.
Letícia vibrou.
— Ôxe! Vai ser lindo, amiga. Você vai ver.
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Atualizado até capítulo 52
Comments
Team Track
Não consigo parar!! 🤩
2025-08-12
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