— Isso é... surreal.
Foi a terceira vez que Rafael murmurou isso naquela manhã.
Sentado à beira da cama do quarto de hóspedes — agora seu novo “quarto” — ele observava a escrivaninha branca, o armário organizado e o roupão cuidadosamente dobrado sobre a cadeira. Tudo cheirava a lavanda e organização, como se tivesse sido pensado nos mínimos detalhes por alguém que vive para controlar o mundo.
Bianca.
Ele mal conseguia acreditar que havia sido casado com ela. Ou que havia sido seu motorista antes disso. Aquela mulher parecia mais uma CEO do que alguém que se apaixonaria por um funcionário. Mas ela falava com tanta convicção… havia um poder nos olhos dela, uma segurança que ele invejava naquele estado confuso em que se encontrava.
Ele desceu devagar as escadas, ainda tonto. Bianca já estava na sala de estar, sentada com uma xícara de chá, óculos de leitura no rosto e um fichário aberto à sua frente. Quando o viu, ergueu uma sobrancelha com a pontualidade de um alarme.
— Bom dia. Dormiu bem?
— Acho que sim. Embora tenha sonhado que eu tinha um jatinho. Acordar aqui foi meio… decepcionante.
Ela sorriu de lado, sem levantar os olhos dos papéis.
— O cérebro tenta compensar. Você sempre teve uma imaginação fértil, Rafael. Um dos seus defeitos mais charmosos.
Ele ficou de pé, esperando por instruções.
Ela fechou o fichário, tirou os óculos e cruzou as pernas.
— Vamos estabelecer algumas regras básicas enquanto sua memória não retorna.
— Regras?
— Sim. Conviver exige ordem. Especialmente porque essa casa tem rotina, e eu, ao contrário de você, trabalho de verdade.
Ele assentiu, devagar.
— Regra número um: nada de entrar no meu escritório. Nunca.
— Certo.
— Regra número dois: mantenha seu quarto arrumado. Eu não tenho paciência para bagunça. Se quiser, posso pedir que o ajudante da limpeza passe lá de vez em quando, mas preferia que aprendesse a se virar.
— Entendido.
— Regra três: não minta. Se não se lembrar de algo, diga. Se não souber fazer, pergunte.
Ele franziu a testa, confuso.
— E o que exatamente espera que eu faça?
Ela se levantou, elegante, como quem está prestes a dar uma palestra.
— Rafael, antes do acidente, você cuidava da parte prática da casa. Pequenos reparos, pagamentos de contas, eventualmente dirigia para mim. Também fazia compras de mercado, organizava as entregas e levava o Rufus para o veterinário.
— Rufus?
— Nosso cachorro. Ele morreu ano passado. Lamento pela sua perda — ela respondeu, com um toque teatral.
Ele engoliu em seco. Era bizarro sofrer por um cachorro que não lembrava de ter amado.
— Entendi. E quanto ao nosso... relacionamento?
Bianca fingiu surpresa.
— Nosso casamento?
— É. Como era?
Ela caminhou até ele, parando a poucos passos de distância.
— Cordial. Discreto. Baseado em respeito mútuo. E no silêncio.
— No silêncio?
— Sim. Nunca gostei de maridos falantes.
Ele piscou, sem saber se aquilo era uma provocação.
— Está bem — murmurou.
— Ótimo — ela respondeu, voltando para a sala. — O mercado entrega às terças. Hoje é dia de pagamento das contas online. Ah, e o café está na cozinha. Se quiser saber onde ficam as coisas, recomendo explorar. Você costumava gostar disso.
Rafael ficou ali por alguns segundos, sentindo-se como um figurante em um teatro que não ensaiou.
Mas, aos poucos, foi se movendo. Conhecendo os espaços. Abrindo portas. Rindo baixinho ao ver uma porta de vassouras onde achava que havia um armário. Tudo parecia novo — e, de alguma forma, íntimo.
No final da tarde, depois de errar a senha do aplicativo do banco três vezes e quase destruir a máquina de lavar, Rafael encontrou uma foto esquecida em uma das gavetas da sala: era ele, ao lado de Bianca, em um evento social qualquer. Ela estava séria. Ele, sorrindo. A legenda dizia: “Sr. e Sra. Belmont — Evento do Instituto de Justiça”.
Ele tocou o papel com cuidado. Aquela imagem parecia tão real quanto distante.
Mais tarde, quando Bianca passou pela sala, ele ergueu a foto.
— A gente... parecia feliz aqui.
Ela parou, observou, depois pegou a imagem de volta com delicadeza.
— Parecíamos, sim.
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Atualizado até capítulo 51
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