O corredor do hospital tinha aquele cheiro estéril e impessoal que Bianca sempre associava à vulnerabilidade. E ela odiava se sentir vulnerável.
De salto alto, vestido preto de alfaiataria e cabelo preso num coque imaculado, ela parecia deslocada entre os jalecos e os olhares preocupados de familiares em poltronas desconfortáveis. Mas a aparência nunca fora um problema para ela. Sabia usar sua presença como uma armadura.
O médico a encontrou perto da recepção da UTI, segurando uma prancheta com papéis demais e empatia de menos.
— Senhora Belmont? — ele confirmou, ajustando os óculos.
— Dra. Vasquez. Belmont é... circunstancial.
Ele piscou, sem saber como responder. Bianca estava acostumada a causar esse tipo de desconforto.
— Rafael acordou há cerca de vinte minutos. Está estável, mas confuso. A tomografia mostrou uma concussão leve, mas significativa. O problema... é a memória recente. Ele parece convencido de que ainda está em 2019.
— E ele perguntou por alguém?
— Não por você. Ainda não.
A informação bateu fundo, mas Bianca manteve o rosto imóvel.
— Posso vê-lo?
— Sim, mas... prepare-se. Ele pode não reconhecer nada. Nem mesmo a si mesmo no espelho.
Ela assentiu e caminhou em direção ao quarto indicado. Cada passo ecoava em sua mente como um lembrete do que estava prestes a fazer. Ela deveria apenas consolá-lo. Esperar. Confiar na ciência.
Mas a verdade é que Rafael Belmont sempre a fez se sentir invisível. E agora... ele era o invisível. O perdido.
Ela empurrou a porta devagar.
O quarto era silencioso, iluminado apenas por uma luz suave próxima à cabeceira. Rafael estava recostado, os olhos fixos no teto. Ele virou o rosto lentamente ao ouvi-la entrar.
Os olhos azuis, tão familiares e distantes ao mesmo tempo, encontraram os dela — e ficaram vazios.
— Olá — ele disse, com voz rouca. — Você é...?
— Bianca — ela respondeu, devagar, como se testasse o gosto do próprio nome nos lábios. — Sua esposa.
Rafael piscou algumas vezes, visivelmente desnorteado. Tentou se sentar melhor, mas a cabeça pesava.
— Minha... esposa?
Ela se aproximou, pegando a cadeira ao lado da cama com calma.
— Nós nos casamos há dois anos.
— Dois... — ele murmurou, pressionando os dedos contra a testa. — Isso não faz sentido. A última coisa que lembro é de estar em Barcelona. Com a... minha ex.
Bianca sorriu, contida.
— Muita coisa aconteceu desde então.
Ele olhou para a mão esquerda, à procura de uma aliança. Estava lá, discreta e brilhante. O símbolo mais mentiroso do mundo.
— E... como a gente se conheceu?
Ela inclinou levemente o corpo para frente, como se fosse contar um segredo.
— Você trabalhava para mim.
Rafael arqueou as sobrancelhas, perplexo.
— Trabalhava?
— Era meu motorista. Um dos melhores que já tive, diga-se de passagem. Tinha opinião demais pra um empregado, mas... era interessante.
— Isso não pode estar certo — ele disse, balançando a cabeça.
— Você era orgulhoso no começo — ela continuou, como se estivesse contando uma lembrança verdadeira. — Mas acabou me encantando. Com seu senso de humor, sua dedicação... e seu silêncio. Sempre preferi os silenciosos.
Ele desviou o olhar, tentando digerir a informação.
— Eu era seu... motorista?
— Era — ela confirmou, sem hesitar. — Mas acabou se apaixonando. E, contra todas as probabilidades, eu... também.
Silêncio. A mentira flutuava entre eles, tão doce quanto venenosa.
— Você não precisa se preocupar com nada agora — ela disse, levantando-se. — Está seguro. Está em casa. E eu... vou cuidar de você.
Enquanto saía do quarto, o som baixo da televisão ligada preenchia o vazio. Bianca não olhou para trás. Sabia que, com o tempo, a memória dele talvez voltasse. Mas, por enquanto, ele era um quadro em branco. E ela era a única com tinta nas mãos.
Ela caminhou até o elevador com passos leves, quase dançantes.
Naquele instante, Rafael Belmont era exatamente o que nunca fora antes para ela: um homem ao alcance do toque.
Um desconhecido moldável.
E ela, a esposa ideal — do jeito que ele nunca imaginou.
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Atualizado até capítulo 51
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