Capítulo 1

📖 Capítulo 1

Ponto de vista: Kael

As luzes da cidade não piscavam — elas sangravam.

Neon, vermelho, azul, o roxo sujo que refletia nas poças de óleo como feridas abertas na pele do asfalto. Era tudo igual, toda noite maldita. O cheiro de gasolina queimava meu nariz. Motos cruzavam como vultos. A batida grave dos carros turbinados fazia o peito vibrar. A cada esquina, alguém vendia mais do que só velocidade.

A cidade vivia drogada.

E eu também

Encostado no capô do meu Skyline preto — minha única religião —, puxei mais uma tragada do cigarro. O filtro já estava molhado de raiva. Minha mão tremia, mas não era pelo vício. Era por ela.

Ela que não devia estar aqui.

Mas estava.

De novo.

E eu era fraco demais pra mandar ela embora.

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Faz três meses desde a primeira vez que vi Luna.

Nome de menina perdida. Corpo de mulher que não pedia permissão.

Ela tinha aquela maldita expressão no rosto... como se já tivesse morrido por dentro. Como se nada mais a assustasse. Me lembrou de mim. E isso me irritou de um jeito estranho.

Naquela noite, ela surgiu no meio da fumaça e do ronco dos motores como um aviso do inferno.

Calça justa, jaqueta de couro, cicatriz na clavícula. Sabe aquele tipo de beleza que não se importa com você? Que não quer chamar atenção, mas chama? Ela era assim.

E eu? Eu devia ter virado as costas. Mas só consegui encarar.

E ela olhou de volta.

Foi ali que começou o erro.

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“Você não é daqui.” Eu disse isso pela primeira vez.

Ela respondeu com um riso seco: “E você não sabe porra nenhuma.”

Coragem ou estupidez? Não sei. Só sei que ela me fez querer perguntar mais — e eu odeio querer qualquer coisa.

Luna não corre.

Ela assiste.

Fica nas arquibancadas de concreto improvisadas entre os becos e os muros pichados.

Mas quando ela me vê correr, parece que o mundo cala a boca. Como se só existíssemos nós dois. A curva, o rugido do motor, o cheiro de borracha queimando… e o olhar dela grudado em mim como uma promessa.

Mas Luna tem um segredo.

Dá pra ver. Nos olhos. No silêncio. Nas marcas no pulso.

E eu? Eu sou bom em descobrir segredos. Especialmente os que deveriam ficar enterrados.

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Hoje foi diferente.

Ela estava usando vermelho.

Roxo é a cor da dor. Preto, da raiva. Mas vermelho… vermelho é guerra.

E ela entrou no meu campo de batalha sem piscar. Passou direto pelos caras, sem dar ouvidos aos comentários idiotas, aos convites sujos. Parou do meu lado.

Eu não me mexi. O cigarro queimava entre meus dedos, esquecido.

— Você vai correr hoje? — ela perguntou.

— O que você quer, Luna?

— Ver se você ainda tem medo de perder.

Minha mandíbula travou.

Ela sempre jogava sujo.

Mas nunca menti.

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A corrida daquela noite valia vinte mil.

Mas isso não me importava. Dinheiro é só papel sujo.

Eu corria por outra coisa. Pela sensação de controle. Pela ilusão de que, ali dentro, no carro, tudo fazia sentido.

No volante, eu mandava.

No volante, eu esqueci.

E hoje, eu precisava esquecer.

Porque aquela maldita garota estava me olhando como se me conhecesse.

E ninguém me conhece.

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A largada foi cruel.

Três carros. Três malucos. Um objetivo: vencer ou morrer bonito.

O motor gritou quando eu pisei fundo. As engrenagens rangiam como se sentissem minha pressa. Os pneus gritaram ao rasgar o asfalto. A cidade virou um borrão.

Mas o rosto dela…

Estava impresso no meu retrovisor.

Cada curva, cada desvio entre os carros fantasmas da madrugada, era como fugir de mim mesmo. E cada vez que quase batia — quase! — pensava nos olhos dela me vendo. Me desejando. Me julgando.

Ela queria ver até onde eu iria.

Até onde eu fui capaz de me destruir.

E a resposta era simples: o quanto fosse necessário.

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Depois da corrida, ganhei.

Como sempre.

Mas não senti vitória.

Senti raiva.

Ela estava me esperando no fim da rua, encostada em uma pilastra grafitada com uma arma desenhada em sangue falso.

— Você ainda dirige como se quisesse morrer — ela disse.

— Você ainda assiste como se gostasse disso.

— Talvez eu goste.

— Talvez você seja pior do que eu pensava.

Ela sorriu. Frio. Sedutor. Quase triste.

— Você não sabe o que pensar sobre mim, Kael.

E era verdade.

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Ela não me deixou encostar.

Mas também não foi embora.

Andamos lado a lado pela parte mais podre da cidade. Gente caída na sarjeta. Cheiro de merda e cerveja vencida. Gritos vindos de algum lugar acima. E nós dois, calados, como se aquele mundo sujo fosse o único possível.

— Você já matou alguém? — ela perguntou, do nada.

Eu parei de andar.

— Ninguém que não merecesse.

Ela assentiu. Sem emoção. Sem susto.

Como se já esperasse essa resposta.

— E você? — perguntei, por instinto.

Ela demorou. Olhou o chão. O céu.

Depois disse:

— Ainda não.

Aquela frase me acertou como um soco no estômago.

Não era uma confissão.

Era uma promessa.

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Horas depois, estávamos no terraço de um prédio abandonado, onde só os piores iam. Lá em cima, os ruídos da cidade pareciam distantes, e o céu estava podre de nublado. Ela estava sentada, pernas cruzadas, a jaqueta caindo do ombro.

— Por que você vem aqui, Luna?

— Porque aqui ninguém mente que é bom.

Silêncio.

Depois ela olhou pra mim.

— Você me odeia?

— Eu odeio tudo em você. — minha voz saiu baixa, crua, sincera.

Ela sorriu. Um sorriso que mais parecia dor.

Depois se aproximou.

Tão perto que consegui ver a cicatriz perto da clavícula — uma linha fina, reta, precisa demais pra ser acidente.

— Você odeia, mas quer. É isso que te destrói, né? — ela sussurrou, com aquele olhar que atravessava carne e alma.

— É você que vai me destruir, Luna?

Ela encostou os lábios no meu ouvido.

— Só se você me deixar.

E eu deixei.

E naquele momento, eu soube: estava fodido.

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