Laura despertou antes do sol.
Não foi o despertador, nem um barulho.
Foi o incômodo sutil de um pensamento que já a assombrava há dias:
“O que mais eu não vi?”
A rotina sempre fora um véu. Tudo em sua casa era organizado, limpo, aparentemente sem segredos. Mas agora, a mesma organização começava a parecer excesso de zelo, como se fosse usada para esconder aquilo que não deveria ser tocado.
Levantou-se em silêncio e, com o cuidado de quem caminha por um campo minado, atravessou o corredor até o escritório de Henrique.
Era um cômodo que raramente usava. Ele dizia que ali precisava de paz. De concentração. De distância do mundo. E ela respeitava. Sempre respeitou.
Mas agora, sentia-se uma estranha dentro da própria vida.
Começou abrindo gavetas, puxando pastas. Documentos médicos, comprovantes de congressos, certidões de participação. Nada suspeito à primeira vista.
Mas no fundo da gaveta mais inferior, encontrou um envelope amarelado, amassado pelas bordas. Dentro, papéis antigos, alguns já desbotados. A maioria dizia respeito à compra do apartamento em que viviam.
Mas um detalhe chamou sua atenção.
Data do contrato: dois meses antes de Henrique pedi-la em casamento.
No papel, apenas o nome dele. Sem o dela. Sem regime de bens.
Sozinho.
Laura nunca questionou a compra. Ele dissera que queria surpreendê-la, que havia planejado tudo. Ela achara romântico na época. Mas agora, aquilo parecia apenas mais um movimento estratégico.
E mais abaixo no envelope… um cartão.
"Parabéns pela nova etapa. Que seja o início de tudo que você merece. — M."
M.
Ela fechou os olhos.
A mesma inicial da aliança escondida.
A mesma letra que agora parecia sussurrar em todos os cantos da casa.
Naquela tarde, depois de organizar os documentos com cuidado para que nada parecesse mexido, Laura saiu para caminhar. Precisava de ar. De distância. De silêncio.
Não planejava reencontrar ninguém. Mas o acaso, como sempre, parecia brincar com ela.
Na esquina da rua da biblioteca, a mesma onde estivera dias antes, avistou Daniel. Estava encostado no corrimão, com o blazer dobrado no antebraço e o celular no ouvido. Ao vê-la, sorriu e finalizou a ligação rapidamente.
— Laura — disse, com uma naturalidade que a fez sorrir de volta. — Achei que aquele banco tinha te assustado.
— Não. Na verdade, me fez bem.
— Que bom. Eu sempre digo que algumas conversas são como abrigo. A gente nem sabe que precisa até estar lá dentro.
Ela assentiu, com um meio sorriso.
— E você? Veio respirar de novo?
— Sempre que posso. O escritório fica insuportável quando tudo é sobre perda, herança, briga familiar. Ninguém procura um advogado porque está feliz, sabe?
Laura engoliu em seco.
— Imagino.
Houve um momento de silêncio entre eles. Um silêncio que não era desconfortável. Era só… leve.
— Quer tomar um café? — ele perguntou. — Nada formal. Só um café, como gente que precisa de uma pausa.
Ela pensou por dois segundos. Depois disse sim.
Na cafeteria próxima à praça, conversaram por quase meia hora. Sobre livros. Sobre o ritmo da cidade. Sobre absurdos do cotidiano.
Daniel era articulado, mas não excessivo. Escutava mais do que falava. E quando falava, havia firmeza e gentileza, sem pressa, sem ensaios.
Laura, por sua vez, sentia-se estranhamente presente. Como se, por alguns minutos, a dor dentro dela ficasse suspensa no ar.
Quando terminaram, ele olhou para ela com um certo cuidado.
— Você parece… cansada por dentro.
Ela baixou os olhos, respirando fundo.
— Estou.
Pela primeira vez, não disfarçou.
Não inventou. Não fingiu.
Ele não pressionou. Apenas deixou um cartão sobre a mesa.
— Se algum dia quiser conversar… de verdade… estou por aqui.
Laura pegou o cartão e guardou na bolsa.
Não respondeu com palavras. Apenas com um olhar silencioso de agradecimento.
Ao chegar em casa naquela noite, encontrou Henrique no escritório. Ele fechou o laptop ao vê-la entrar e tentou sorrir.
— Oi, amor. Tudo bem?
— Tudo — respondeu ela. — Só cansada.
E então, ele fez algo que a surpreendeu.
— Pensei em viajarmos no próximo fim de semana. Uma pousada, só nós dois. O que acha?
Laura franziu o cenho.
Henrique nunca propunha viagens assim. Sempre dizia estar ocupado. Sempre evitava fins de semana fora, alegando plantões.
Ela sorriu.
— Achei ótimo.
E saiu do cômodo antes que ele pudesse ver o brilho cortante nos olhos dela.
Porque agora, ela sabia.
Henrique estava tentando distraí-la.
Mas era tarde demais.
Ela já tinha começado a ver tudo com clareza.
E nada mais voltaria a ser como antes.
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Atualizado até capítulo 50
Comments
Sandra Camilo
isso mesmo a traição é foda e ainda tem uma filha no caminho, torço para ela ligar para o Daniel
2025-07-20
0
Sandra Camilo
Oi autora linda estou amando cada capítulo posta fotos deles
2025-07-20
0
rafamendes
se ela remexer mais vai achar
2025-07-17
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