Entre véus e olhos que queimam

Acordar às cinco da manhã pra rezar com freiras que mal piscam?

É o preço que se paga por querer esconder a bunda num convento.

Não que eu tenha algo contra quem reza — longe disso. Cada um tem seu escape. Só que eu preferia estar dormindo. Ou tomando café com leite com pão na chapa. Ou sei lá, viva.

Mas tô aqui. Uniforme no corpo, olheiras na cara, e um sorriso falso preso no rosto como se eu fosse santa. Só falta a auréola. E o milagre.

Na primeira oração do dia, quase dormi em pé. A madre me olhou como se estivesse me lendo por dentro. Sorte que Isabela apareceu do nada e sussurrou um “amém” alto o suficiente pra me acordar. Quase beijei a testa dela.

— Você parece cansada — ela disse no corredor, com aquela voz doce de criança bem criada.

— Eu pareço um susto — respondi. — Dormi mal. Pesadelos.

Ela assentiu devagar, como se entendesse.

Mas ninguém entende. Só eu sei o que é dormir esperando que a porta estoure, que uma respiração pesada venha no escuro, que uma voz diga que você “pertence” a alguém. E não no bom sentido.

Mas engoli seco. Voltei a andar. Aqui, cada passo é uma encenação. Cada movimento precisa parecer limpo, calmo, casto.

E olha… castidade nunca foi meu forte.

---

A madre Teresa me chamou depois da oração. Disse com aquele olhar de quem cheira mentira a metros de distância:

— Irmã Clara, ajude o padre Tomás na biblioteca. Temos muitos volumes sem catalogação. É um serviço discreto.

Discreto.

Ela sabe. Ela sabe que tem algo errado comigo. Mas tá testando. Jogando isca.

Suspirei e fui.

A biblioteca era o lugar mais bonito do convento. Cheiro de livro velho e madeira encerada. Um silêncio gostoso, abafado. E frio.

Frio até eu ver ele.

Tomás.

O padre.

O pecado inteiro vestido de batina.

Ele tava em pé, lendo um livro grosso, apoiado numa estante. Luz entrando pela janela e batendo bem no rosto dele. Olhos fechados. Sobrancelha franzida.

E aquela boca...

Aquela boca definitivamente não era de padre.

— Boa tarde — falei, tentando parecer casual, mas já sentindo o suor nas costas.

Ele virou o rosto devagar. Me olhou. Como se estivesse me examinando.

— Irmã Clara, certo?

Minha vontade era responder: “Nem irmã, nem Clara, mas estamos aí.”

Mas sorri.

— Sim. Disseram que você precisava de ajuda.

Ele fez que sim com a cabeça e apontou uma pilha de livros.

— Se puder separar por temas, já ajuda bastante. Os registros são antigos. Preciso rever algumas anotações.

Sentei no chão mesmo, perto da pilha. Preferia evitar ficar muito perto dele.

Porque quanto mais perto, mais difícil era fingir que ele era só um padre.

O cara tinha a voz rouca. Rouca. Como é que um homem desse vira sacerdote?

— Já esteve aqui antes? — ele perguntou, sem tirar os olhos do livro.

— Não. Vim de outra missão. Mas as coisas por lá… saíram do controle.

Ele me olhou. Direto. Intenso.

— Você está bem agora?

Quase respondi “tô viva, isso já é lucro”, mas engoli o sarcasmo.

— Tô tentando.

Silêncio.

Ele voltou a ler. Eu voltei a fingir que entendia como dividir teologia de liturgia.

Mas cada vez que ele se mexia, o tecido da batina esticava no ombro. E eu via.

Sim, eu vi.

O homem era definido. Peitoral de pecadora sonhadora.

Tentei focar nos livros.

"Epístolas de São Paulo."

“Meditações e Humildade.”

“Cânticos para o Corpo…”

Opa.

— Esse aqui vai pra que sessão? — perguntei, levantando o livro com um sorrisinho torto.

Ele olhou o título, depois olhou pra mim.

— Corpo humano. Biologia sagrada.

Fiquei calada. Mas o jeito que ele disse "corpo"... misericórdia.

Senti o rosto esquentar. Fingi que era calor. Mas tava gelado lá. O calor era meu.

Fiquei lá mais meia hora, mas parecia uma eternidade. Cada vez que ele falava, minha mente ia longe.

A batina. A voz. O olhar.

E o pior: a paz dele. Aquele tipo de paz que eu não sei sentir.

Quando saí da biblioteca, minhas mãos tremiam.

Mas o que me assustava mais era o resto de mim que também estava tremendo.

---

Me escondi no canto mais isolado do jardim do convento. Um banco de pedra, meio sujo, mas bom o suficiente pra desabar.

Eu tava surtando por causa de um padre.

Um. Padre.

Fechei os olhos. Tentei lembrar de Julián. Dos olhos dele cheios de controle. Da raiva que vinha escondida no “eu te amo”.

Tentei lembrar do medo. Do motivo que me fez vir pra cá.

Mas tudo que vinha… era a imagem de Tomás ajoelhado. A mão segurando um livro como se fosse sagrado.

E a voz. A voz dele dizendo "corpo".

Levantei. Sacudi a poeira da roupa. Voltei a andar como quem tá fugindo de si mesma.

---

À noite, passei pelo corredor da capela. A porta estava entreaberta.

Tive a curiosidade.

Olhei.

Ele tava lá. Sozinho. De joelhos. Os olhos fechados. Silêncio completo.

Como se estivesse conversando com Alguém lá em cima.

Não sei o que ele pedia.

Mas meu coração apertou.

Porque eu tava ali. Escondida. Suja de culpa. Desejando um homem que deveria estar acima disso tudo.

E mesmo assim, não consegui desviar o olhar.

Talvez porque algo em mim soubesse que ele também estava em guerra.

Sorri de canto e murmurei bem baixinho pra mim mesma:

— Padres não deviam ser bonitos. E eu não devia estar sentindo isso.

Mas aqui estamos.

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