As luzes da estrada estavam borradas pela chuva fina, mas meus olhos sabiam o caminho mesmo no escuro. As mãos tremiam no volante, o coração batia como um tambor descompassado. Cada curva naquela rota deserta parecia esconder um vulto. Talvez fosse o medo. Talvez fosse ele.
Julián.
Fugir dele não era uma escolha. Era questão de sobrevivência. De não enlouquecer. De não desaparecer dentro de mim mesma.
A cada quilômetro percorrido, eu sentia o peso do que deixava para trás: minha casa, minha vida, meu nome. E junto com tudo isso, o resto da minha fé. Não que ainda restasse muita. Ela morrera anos atrás. No mesmo dia em que meus pais foram levados de mim.
O limpador do para-brisa riscou o vidro com um rangido seco, como se quisesse apagar as imagens da minha memória. Mas era inútil.
Eu tinha seis anos.
Me lembro do vestido rosa com laço nas costas. Me lembro da voz doce da minha mãe me chamando para apressar.
— Vamos, mi niña, vamos nos atrasar para a missa.
Me lembro do cheiro do perfume dela, da risada do meu pai quando pegou as chaves do carro.
— Hoje vai chover. Melhor irmos de carro — ele disse.
Foi a última decisão que ele tomou.
Estávamos cantando baixinho no banco de trás, e tudo parecia perfeito. Até aquele clarão. O som. O susto. A dor. O vazio.
Acordei dias depois em um hospital frio, cercada por vozes estranhas. Uma mulher com um véu branco segurava minha mão e sussurrava orações.
— Você ficou. Há um propósito para isso.
Mas o que eu queria era voltar. Para o carro. Para aquele instante antes de tudo mudar.
Desde aquele dia, não entrei mais numa igreja. Não rezei. Não pedi. Não questionei.
Deus, para mim, passou a ser silêncio. Um silêncio tão alto que doía.
O letreiro apagado à beira da estrada me avisou que estava perto. Santa Cruz del Monte. A cidade onde ninguém me conhecia. Onde eu poderia ser alguém diferente.
Reduzi a velocidade. O motor gemeu baixo. Vi, à distância, a cruz de pedra que marcava a entrada do convento. Meu novo esconderijo.
Estacionei o carro alguns metros antes, desliguei os faróis e esperei. Chovia mais forte agora, como se o céu me testasse.
Respirei fundo. Peguei a mochila do banco do passageiro e vesti o hábito de freira. Era antigo, manchado, mas bastava para sustentar a mentira.
“Irmã Clara.” Esse seria meu nome a partir dali.
Caminhei até o portão de ferro, toquei a campainha e esperei. O som ecoou como uma sentença.
Uma freira idosa atendeu. Os olhos semicerrados me examinaram de cima a baixo.
— Quem é você?
— Irmã Clara. Estou vindo da missão do norte. Tive... problemas no trajeto. A madre superiora saberá.
Ela não pareceu convencida, mas não me fechou a porta. Talvez por caridade. Talvez porque estivesse cansada demais para discutir com a chuva.
Fui conduzida até um pequeno quarto no fundo do convento. As paredes eram nuas, o chão frio, e a cama dura. Mas para mim, aquilo era abrigo.
Enquanto despia o manto encharcado, me olhei no espelho rachado.
Valentina Ruiz já não existia.
Ali, eu era outra.
Ou pelo menos, precisava ser.
Na manhã seguinte, o som de vozes em oração me despertou. Era suave. Em latim. Como um eco de outro tempo.
Coloquei o hábito novamente e saí pelo corredor. O convento era antigo, feito de pedras claras e corredores estreitos. O ar cheirava a madeira molhada e velas apagadas.
Caminhei em silêncio, fingindo reconhecer os lugares. Cruzava com outras freiras que me cumprimentavam com a cabeça. Algumas me olhavam com desconfiança. Outras com piedade.
Dobrei à esquerda e ouvi uma voz masculina vindo da capela. Era firme, grave, serena. Cada palavra que ele dizia parecia cortar o ar com precisão.
Aproximei-me devagar. Não sabia que havia homens no convento. Talvez fosse um padre visitante. Ou apenas alguém em missão.
Espiei pela porta entreaberta.
E vi ele.
De costas para mim, ajoelhado diante do altar, um homem de batina preta recitava orações em voz baixa. Seus ombros largos estavam imóveis, mas sua postura transmitia força. A luz da manhã atravessava o vitral colorido e banhava seu corpo com tons dourados.
Meu coração disparou.
Eu não sabia quem era aquele homem. Mas algo nele me deixou alerta. Era a forma como ele respirava. Como ficava em silêncio entre as palavras. Como se ouvisse alguma coisa que ninguém mais conseguia ouvir.
Virei o rosto, me encostei na parede fria do corredor e fechei os olhos.
Não.
Não vim aqui para isso.
Não posso me distrair.
Mas havia algo nele que me desestabilizou. Como se o silêncio que eu carregava há anos tivesse, de repente, encontrado resposta na voz de um estranho.
Padre Tomás Aguilar.
Foi assim que me disseram mais tarde que se chamava.
Naquele instante, ele não me viu. Nem eu falei com ele.
Mas algo dentro de mim… se moveu.
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Atualizado até capítulo 38
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