A sombra dele
Maitê
Ele não me dirigiu a palavra pelo resto da noite.
A mansão estava lotada. Capos, soldados, aliados da velha guarda e até membros da nova geração da máfia passaram pelas portas de mármore como se fosse uma celebração. Mas não havia festa. Só o retorno do novo Don... e o aviso silencioso de que ninguém estava acima dele.
Exceto eu, talvez. A garota invisível que ele fez questão de enxergar só para lembrar onde era o meu lugar.
No dia seguinte, bem cedo, fui chamada à biblioteca.
O mesmo cômodo que um dia foi meu refúgio, onde eu lia escondido livros que ele deixava esquecidos nos cantos. Onde o silêncio era compartilhado sem peso. Agora, as paredes pareciam menores. Mais frias.
Hendrick estava de pé, junto à estante central, com as mangas da camisa social dobradas até os antebraços tatuados. As veias saltavam discretas. Os olhos cinzentos, como sempre, inabaláveis.
— Chegou rápido. — Ele nem me olhou, apenas gesticulou para uma pilha de documentos na mesa. — A partir de hoje, você vai organizar os registros da casa. Movimentação de pessoal, pagamentos, contratos antigos. Quero tudo escaneado e digitalizado.
Engoli seco.
— Mas... isso é função da administração. Eu não—
— Agora é sua. — Ele cortou, virando-se lentamente em minha direção. — Ou tem algo mais interessante pra fazer além de circular pelos corredores ouvindo o que não deve?
O golpe foi direto. Ele achava que eu espionava? Ou estava apenas me provocando?
— Eu nunca me meti no que não era meu, Hendrick.
— E é bom continuar assim. Porque aqui dentro, quem erra... desaparece. — Ele se aproximou devagar, até encostar a mão na beirada da mesa, sem tocar em mim, mas me cercando com a presença. — Entendeu?
Assenti com um leve movimento de cabeça, mesmo com o orgulho rangendo por dentro.
— Ótimo. E mais uma coisa... — Seus olhos percorreram meu corpo com calma. Frieza. Poder. — Vista-se de forma mais... discreta. Não quero distrações no meu campo de visão.
O baque veio seco. Eu usava uma calça jeans escura e uma blusa de malha de manga longa. Nada que chamasse atenção. Mas ali não se tratava da roupa. Era sobre controle.
Sobre mostrar quem mandava.
Meus olhos arderam, mas segurei.
— Entendido.
Ele deu um meio sorriso.
Cruel. Vitorioso.
— Boa garota.
Saiu da sala como se tivesse vencido uma guerra. E talvez tivesse. Porque a partir daquele momento, eu estava oficialmente sob o domínio de Hendrick Valentini.
E ele sabia exatamente como fazer isso parecer um jogo que só ele sabia jogar.
Olhos de mel
Hendrick
Ela não mudou.
Ou pior... mudou o suficiente para ser ainda mais perigosa.
Maitê sempre foi silenciosa demais. Atenta demais. Boa demais.
Coisas que nesse mundo... viram fraqueza. E fraqueza, eu não posso mais ter.
Quando entrei na mansão e a vi no alto da escada, o tempo bateu em mim como uma faca girando nas costelas. Um lembrete amargo do que eu deixei pra trás. Ou do que me obrigaram a enterrar.
Ela não me chamou de “Senhor Valentini”.
Ela me olhou como se ainda houvesse algo humano em mim.
Como se o menino de antes ainda estivesse vivo.
Mas ele não está. Eu o matei no dia em que fui jogado na Itália, sem aviso, sem escolha, para ser moldado como herdeiro do império do meu pai.
Fui treinado por homens que matavam antes de pensar.
Torturado para aprender a não reagir.
Obrigado a assistir execuções como se fossem aula de matemática.
Dormia três horas por noite. Acordava com sangue nos sapatos.
Comi o mesmo prato por meses. Tive os ossos quebrados mais de uma vez.
Tudo para aprender que… o Don não sente.
O Don não perdoa.
O Don não ama.
E Maitê…
Ela era o oposto disso.
Na infância, ela passava por mim como uma brisa.
Sorria pouco, mas quando sorria, parecia que as janelas da mansão se abriam.
Às vezes lia sentada no chão da biblioteca, com os joelhos dobrados e a testa franzida de concentração. Outras vezes, cuidava dos irmãos enquanto os adultos brigavam em silêncio nos corredores.
Nunca falamos muito. Mas ela sabia me ler. E eu… a ouvia em silêncio.
Era perigoso sentir aquilo. Mas eu sentia. Um conforto. Uma calma. Algo que os Valentini não podiam saber.
Por isso me afastei.
Fui embora e nunca escrevi, nunca liguei, nunca olhei para trás.
Porque se eu tivesse ficado… ela teria sido a minha fraqueza.
E agora ela está aqui. Linda. Curvada pelo tempo, não pela vida.
Com os mesmos olhos de mel que me desarmam desde sempre.
Mas agora eu sou outro.
Eu sou o homem que aprendeu a destruir antes que algo o destrua.
E se ela cruzar meu caminho da forma errada...
Nem mesmo os olhos dela vão me impedir de esmagar quem for necessário.
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Atualizado até capítulo 48
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