Isabela passou o resto do dia imersa nos diários de Lúcia. Quanto mais lia, mais a voz de sua avó parecia ecoar nas páginas, revelando não apenas a dedicação às flores, mas também uma alma complexa, cheia de sabedoria e, agora ela percebia, segredos. As anotações sobre a Orchidaceae Scarlata se tornaram mais frequentes, não apenas como uma lenda botânica, mas como algo que sua avó buscava com fervor, quase uma obsessão. Lúcia descrevia-a como uma flor de rara beleza, pétalas de um vermelho intenso, quase vibrante, com veias douradas que pareciam pulsar vida. Dizia-se que florescia apenas em condições muito específicas e em locais secretos. A última anotação sobre a orquídea, escrita anos antes da morte de Lúcia, dizia: "A verdade da orquídea está ligada à verdade da terra. E a verdade da terra pode custar caro."
Exausta, mas com a mente fervilhando, Isabela decidiu que precisava de ar fresco. Ela saiu da floricultura e caminhou pelas ruas iluminadas de Nova Friburgo. As luzes da cidade cintilavam no vale, criando um cenário mágico. Ela chegou a uma praça no centro, onde havia um coreto antigo, de ferro forjado e coberto de hera, e alguns bancos onde casais e famílias conversavam. Isabela se sentou em um banco vazio, observando o movimento.
De repente, uma voz conhecida a tirou de seus pensamentos.
"Senhorita Fontes. Que surpresa agradável."
Era Daniel Albuquerque. Ele estava sentado em outro banco, alguns metros de distância, observando-a. Ele não estava de terno, mas com uma camisa social azul escura, com as mangas dobradas nos antebraços fortes, e calças de sarja bem cortadas. Parecia mais relaxado, mas a intensidade de seus olhos azuis ainda estava lá.
Isabela sentiu um calafrio, mas manteve a compostura. "Senhor Albuquerque. Parece que Nova Friburgo é menor do que eu pensava."
Ele riu, um som suave e grave. "Ou talvez nossos destinos estejam mais entrelaçados do que gostaríamos de admitir." Ele se levantou e caminhou até o banco dela, pedindo permissão com o olhar antes de se sentar. "Vejo que está aproveitando a noite."
"Apenas um momento de paz antes de voltar à realidade", ela respondeu, sem revelar o que havia descoberto nos diários.
Daniel a observou. "Você parece perturbada. É a floricultura? A oferta ainda está de pé, sabe. Uma saída honrosa para todos."
Isabela suspirou. "Não é tão simples. A floricultura... tem muitos segredos. E estou começando a descobrir que eles envolvem sua família também."
A expressão de Daniel mudou. Seus olhos se estreitaram levemente, e ele pareceu ficar em alerta. "Minha família? O que você quer dizer?"
Isabela hesitou. Confiar nele? Era seu "inimigo" nos negócios. Mas a verdade estava se revelando e, de alguma forma, sentia que ele poderia ser parte da solução, ou pelo menos da compreensão. "Minha avó, Lúcia, e um tal de Elias. E uma disputa de terras antiga que, de alguma forma, parece ter envolvido os Albuquerque."
O rosto de Daniel endureceu. Ele se inclinou para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. "Elias... um Elias ligado à sua avó? E disputas de terra... Isso é o que meu pai nunca me contou. Ele sempre foi muito misterioso sobre o interesse na sua floricultura. Dizia que era 'pessoal'."
"Pessoal o suficiente para sua prima me ligar e me ameaçar", Isabela retrucou, observando a reação dele.
Daniel franziu a testa. "Verônica ligou para você? O que ela disse?" Havia raiva genuína em sua voz.
"Disse que 'todos temos nossos pontos fracos' e que eu 'cederia'. Aparentemente, a incorporadora não aceita um 'não' como resposta", Isabela disse, desafiadora.
Daniel se recostou no banco, massageando as têmporas. "Ela não deveria ter feito isso. Verônica é... ambiciosa demais. E ela não sabe de tudo. Nem eu." Ele fez uma pausa, e seus olhos azuis se encontraram com os dela. "Ouça, Isabela. Eu não sou como meu pai, nem como Verônica. Se há algo sobre o passado que envolve nossas famílias, eu quero saber. Eu não trabalho com ameaças veladas."
Isabela o estudou. A sinceridade em seus olhos era convincente. E a raiva em relação a Verônica era clara. "Eu encontrei recortes de jornal antigos. Falavam de uma disputa de terras abafada, envolvendo minha avó. E uma foto dela com um homem, Elias. No verso, a inscrição: 'Lúcia e Elias. Nossa Orquídea'."
Daniel pareceu chocado. "Elias? Um parente Fontes?"
"Eu não sei. Não se parece com nenhum parente que eu conheça. E o nome Elias... Não é um sobrenome Fontes, ou pelo menos não um que eu reconheça de nossa árvore genealógica."
Daniel se levantou, andando de um lado para o outro na calçada. "Isso é... estranho. Meu pai nunca mencionou um Elias. Mas ele sempre escondeu coisas sobre o passado da empresa, sobre como ele adquiriu certas propriedades." Ele parou e se virou para Isabela. "E a Orquídea Escarlate... Ele tinha uma obsessão por ela. Lembro-me de quando eu era criança, ele tentou comprar uma estufa inteira de orquídeas raras, mas não era a certa."
Isabela sentiu um arrepio. "Sua avó também tinha essa obsessão pela Orchidaceae Scarlata. Ela acreditava que era a chave para algo."
Um silêncio carregado de tensão pairou entre eles. Era como se as peças de um quebra-cabeça antigo começassem a se encaixar, revelando uma imagem maior e mais complexa.
"Eu preciso ir", Daniel disse de repente, a voz mais rouca. "Eu preciso falar com meu pai. E investigar mais a fundo." Ele olhou para Isabela, e havia uma nova luz em seus olhos, não mais apenas de interesse nos negócios, mas de uma curiosidade compartilhada, quase uma aliança tácita. "Eu acredito em você, Isabela. E se há segredos, eles precisam vir à tona. Juntos."
Isabela assentiu. Era um pacto silencioso, uma trégua inesperada. A busca pela verdade se tornava mais importante do que a rivalidade pela floricultura. Pelo menos por enquanto.
Enquanto Daniel se afastava, Isabela percebeu que a noite em Nova Friburgo havia ficado mais fria. Ela se levantou, sentindo o peso das descobertas, mas também uma estranha sensação de alívio. Ela não estava sozinha nessa batalha contra as sombras do passado. Daniel Albuquerque, o homem que ela via como seu adversário, poderia ser, ironicamente, seu maior aliado na busca pela verdade. E a orquídea escarlate, que antes era uma lenda distante, agora parecia apontar para uma história real e urgente, enterrada sob a poeira de gerações.
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Atualizado até capítulo 36
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