Isabela passou a primeira noite na floricultura sob um cobertor velho, em um colchão empoeirado que encontrou na parte de trás da estufa. O ar frio da serra entrava pelas frestas das janelas, e o silêncio da noite era preenchido apenas pelo barulho dos grilos. Seus sonhos foram povoados por lembranças de sua avó, de risadas e do perfume inconfundível das orquídeas. Ao amanhecer, o sol tímido de Nova Friburgo invadiu o ambiente, revelando a extensão do trabalho que tinha pela frente.
Ela começou limpando o escritório. A poeira acumulada cobria tudo como um manto cinza. Com um pano úmido, Isabela revelou a madeira escura da escrivaninha, manchada em alguns pontos pela umidade, mas ainda robusta. Ela organizou os papéis, muitos deles contas antigas e recibos. Em uma das gavetas, encontrou uma caixa de metal enferrujada. Ao abri-la, descobriu um tesouro: fotos amareladas pelo tempo. Havia fotos de Lúcia jovem, com um sorriso vibrante e os cabelos escuros, muito parecida com Isabela. Em uma delas, Lúcia estava ao lado de um homem alto, de cabelos escuros e um sorriso gentil, que Isabela não reconheceu. Eles pareciam muito felizes, segurando um buquê de orquídeas raras.
Isabela sentiu uma pontada de curiosidade. Quem seria aquele homem? Sua avó nunca havia falado muito sobre seu passado antes de conhecer seu avô, que já era idoso quando Isabela nasceu. Lúcia sempre foi discreta, mantendo sua vida pessoal resguardada.
Enquanto isso, a quilômetros dali, Daniel acordava em seu apartamento de cobertura, um espaço moderno e luxuoso, com grandes janelas que ofereciam uma vista espetacular da cidade. A luz da manhã inundava a sala minimalista, com seus móveis de design e obras de arte contemporânea. Ele tomou seu café em silêncio, revendo mentalmente a conversa com Isabela. A teimosia dela era intrigante. Ele estava acostumado a que as pessoas se curvassem à sua vontade, especialmente quando o dinheiro estava envolvido.
No escritório, Daniel se aprofundou nos relatórios sobre a Floricultura Fontes. Os números eram claros: a propriedade era estratégica para a expansão do seu próximo projeto, um complexo de luxo que ele imaginava como um marco em Nova Friburgo. Mas havia algo mais, algo que seu pai, Otávio, sempre enfatizava. Otávio tinha uma obsessão peculiar pela floricultura, uma história antiga que ele nunca revelava completamente.
Quando Daniel assumiu a Incorporadora Albuquerque, seu pai o instruiu especificamente a adquirir aquela propriedade, custe o que custar. Otávio sempre foi um homem de poucas palavras sobre o passado, mas suas ações falavam alto. Ele era um homem imponente, com um porte de quem sempre esteve no controle, e seus olhos, embora semelhantes aos de Daniel em cor, eram mais frios, carregados de uma autoridade inquestionável. Otávio havia construído o império Albuquerque do zero, e tinha uma reputação de ser implacável nos negócios.
Daniel discou o número do pai. "Pai, sobre a Floricultura Fontes... a Isabela Fontes está irredutível."
"Eu esperava isso", a voz de Otávio soou do outro lado da linha, calma, mas com uma frieza calculada. "Os Fontes sempre foram teimosos. Mas tudo tem um limite, Daniel. Você sabe o quanto essa propriedade é importante para nós."
"Eu sei. Mas há outras opções, talvez um pouco mais distantes, mas que não nos custariam uma batalha legal desgastante", Daniel argumentou, tentando desviar do assunto que parecia irritar o pai.
Otávio suspirou. "Não, Daniel. Não há outras opções. Aquela terra tem um valor inestimável para a família. Não só pelo potencial de construção, mas por... por razões pessoais."
Daniel sentiu a pontada de mistério novamente. "Razões pessoais, pai? O que a Floricultura Fontes tem de tão especial que você nunca me conta?"
Houve um silêncio prolongado do outro lado. "Alguns segredos devem permanecer enterrados, meu filho. Apenas cumpra sua parte. Adquira a floricultura. Não importa o custo." A voz de Otávio endureceu, e Daniel sabia que a discussão estava encerrada.
Enquanto isso, de volta à floricultura, Isabela continuava sua faxina. Ela encontrou uma pilha de papéis empoeirados debaixo de alguns vasos velhos. Eram contas, sim, mas também alguns recortes de jornal antigos, datados de várias décadas. Um deles chamou sua atenção: "Família Fontes Envolvida em Disputa de Terras". O artigo era curto e vago, mencionando uma briga por posse de terra que envolvia sua avó e uma família "influente" da cidade, sem citar nomes. O caso havia sido abafado na época.
Isabela sentiu um calafrio. Disputa de terras? Com quem? E por que sua avó nunca mencionou isso? Ela se lembrava de Lúcia sempre ser tão transparente, tão honesta. Seria essa a razão da teimosia de Lúcia em não vender a floricultura, mesmo sob pressão?
Ela continuou a procurar, e em meio aos recortes, encontrou uma pequena foto, quase escondida. Era a mesma foto que havia encontrado antes, de sua avó Lúcia com o homem desconhecido. Mas, desta vez, havia uma pequena inscrição no verso, em letra cursiva delicada: "Lúcia e Elias. Nossa Orquídea."
Elias. Quem era Elias? E por que "Nossa Orquídea"? Isabela sentiu que estava desvendando um quebra-cabeça. A lenda da Orchidaceae Scarlata, a orquídea rara que sua avó mencionava nos diários, talvez não fosse apenas uma lenda. Talvez fosse a chave para entender o passado da família Fontes, e, por algum motivo, o interesse da família Albuquerque.
Naquele exato momento, o telefone de Isabela tocou. Era um número desconhecido. Ela hesitou, mas atendeu.
"Olá, senhorita Fontes. Espero não estar incomodando", a voz era fria e suave, mas Isabela a reconheceu instantaneamente. Era Verônica Sampaio. "Soube que você se instalou na floricultura. Que pena que um lugar tão charmoso esteja em condições tão precárias."
Isabela apertou o telefone. "O que você quer, Verônica?"
"Apenas fazer uma visita de cortesia", Verônica respondeu, e Isabela podia quase sentir o sorriso cínico da mulher do outro lado da linha. "E talvez oferecer uma pequena ajuda. Você sabe, a Incorporadora Albuquerque é muito generosa com seus futuros vizinhos."
"Não precisamos de sua generosidade. E não seremos seus vizinhos. Não estamos vendendo", Isabela retrucou, sua voz firme.
"Oh, mas você vai. Pode demorar um pouco mais do que o esperado, mas você vai. Tenho certeza que podemos encontrar algo que a faça mudar de ideia. Afinal, todos temos nossos pontos fracos, não é mesmo?" As últimas palavras de Verônica foram ditas com um tom ameaçador que fez a espinha de Isabela gelar.
A ligação foi encerrada. Isabela sentiu o peso das palavras de Verônica, a promessa velada de problemas. Ela olhou para a foto de Lúcia e Elias, para o diário e para os recortes de jornal. O que o passado da família Fontes escondia? E por que os Albuquerque, especialmente Otávio, estavam tão desesperados por aquela terra? A poeira que cobria a floricultura não era apenas sujeira; era o véu de segredos que começava a ser erguido.
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Atualizado até capítulo 36
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