A casa que nunca foi lar

Os passos de Rayhna ecoavam pelo chão de madeira como se o tempo caminhasse com ela.

Não havia poeira ali dentro. Nem cheiro de abandono.

Mas também não havia vida.

A casa estava intacta, como se tivesse sido fechada ontem. Mas o ontem dela era séculos atrás.

Ela andou devagar, tocando as paredes como se as estivesse reconhecendo pelo tato. Cada tábua, cada dobra no tecido rasgado, cada rachadura no vidro — tudo aquilo era dela.

E ainda assim, nada ali a acolhia.

Era uma casa erguida por necessidade. Por sobrevivência. Não por afeto.

Um esconderijo. Um templo sombrio. Uma prisão segura.

No quarto principal, o espelho já não a ignorava: agora refletia apenas escuridão atrás dela.

Como se a sombra fosse sua verdadeira companhia.

Rayhna passou os dedos pelos livros no canto. Muitos eram do século XVII, escritos à mão, cobertos de símbolos que os olhos modernos jamais entenderiam.

Ela puxou um. Abriu em uma página marcada com fio de cabelo trançado.

Leu em voz baixa:

> “O que sangra no escuro, respira na eternidade.

Mas só os olhos marcados verão além da morte.”

Ela fechou o livro devagar. A eternidade não era um dom. Era um fardo.

E ela sabia bem disso.

Lá fora, o céu começava a escurecer. Mas dentro da casa, a escuridão sempre chegava primeiro.

As velas se acenderam novamente, como se sentissem que a noite real se aproximava.

Rayhna caminhou até o quarto de hóspedes.

Ali, havia restos de coisas que ela havia deixado para trás — um vestido antigo, um pingente em forma de espiral, um par de botas do século passado.

Mas o que a fez parar foi algo inesperado: um retrato riscado com sangue seco.

Era ela e…

Lucien.

O papel estava rasgado na parte do rosto dele.

Mas o contorno ainda era reconhecível.

O braço dele envolvia a cintura dela. Os olhos — os dela — ainda eram caramelo na pintura.

Era de uma época em que ela ainda acreditava.

Rayhna pegou o quadro com as duas mãos.

O silêncio da casa ficou pesado.

Ela não chorou.

Rayhna não chorava mais.

Foi então que ouviu.

— Você voltou cedo demais…

A voz veio da janela, mas ninguém estava ali.

Ela se aproximou, e a brisa bateu forte, levantando as cortinas como se mãos invisíveis tentassem tocá-la.

— Não existe cedo quando se espera por séculos — respondeu.

Era Nyx, novamente. A presença dela era como um incenso queimando ao longe. Nunca se mostrava por inteiro.

— A vila já a sente. O solo também.

— Que sintam.

— E ele?

— Ele nunca deixou de sentir.

Rayhna fechou a janela com força. O estalo ecoou pela casa.

Foi para a cozinha.

Não havia comida, nem utensílios modernos. Apenas objetos de outra era: caldeirões de ferro, potes de vidro escuro, ervas penduradas no teto.

Ali, ela se sentia mais próxima de si.

Acendeu uma chama no antigo fogão a lenha.

O fogo dançou como se a reconhecesse.

E ela começou a ferver água para preparar um antigo chá. Não por gosto. Mas por necessidade.

O sangue dela pulsava acelerado.

E quando isso acontecia, era preciso conter. Respirar.

Antes que os olhos vermelhos tomassem tudo.

Deitou algumas folhas na infusão, murmurando palavras em uma língua que não se falava mais.

A chama baixou. A água escureceu.

Ela bebeu em silêncio.

O gosto era amargo, quente.

Trazia de volta lembranças que ninguém deveria guardar.

📜 O século XVII. Um salão de pedra. Um banquete interrompido por gritos. Um vestido branco manchado com sangue. Ela de joelhos, e ele com a mão estendida, jurando que protegeria. Rayhna não hesitou. Entregou-se à promessa. E perdeu tudo.

Ela fechou os olhos. A lembrança desapareceu.

Voltou à sala principal.

No chão, um círculo de proteção desenhado em carvão permanecia ali, intacto.

Rayhna se ajoelhou ao centro e tocou o símbolo do meio: o Khar’eth Sulum.

O desenho vibrou sob seus dedos.

O ar ao redor ficou denso, como se o tempo tivesse parado por um segundo.

E então, ela ouviu um batida na porta.

Levantou devagar.

Nenhum ser humano ousaria bater naquela casa.

Abriu.

Mas não havia ninguém.

Apenas uma flor vermelha deixada no chão.

Uma só.

Rayhna olhou ao redor. Nenhum rastro. Nenhum cheiro. Nada.

Apenas a flor.

E o nome dela gravado na pétala.

Ela a pegou entre os dedos.

O toque da flor era frio.

Voltou para dentro, fechando a porta.

O coração que já não batia como o dos mortais acelerou.

Não por medo.

Mas por algo mais perigoso: memória viva.

Subiu as escadas até o sótão.

Lá, uma caixa selada com cera escura a esperava.

Ela passou os dedos na tampa.

A cera se partiu sozinha.

Dentro, um pergaminho enrolado, com o símbolo dos antigos guardiões de Nyx.

Rayhna desenrolou.

Era um aviso.

> “Se o sangue retornar à terra antes da lua cheia,

o que estava selado será libertado.

E ele será atraído pela tua presença,

como o último fôlego antes da morte.”

Ela fechou os olhos.

Ele viria.

Lucien.

Mas desta vez…

Não havia mais promessa.

Nem salvação.

Só destino.

Mais populares

Comments

JustReading

JustReading

Adorei! ❤️

2025-07-07

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!