A chegada de Rayhna

Ela entrou na vila como quem já esteve ali em outra vida. Ou em muitas.

Os passos eram lentos, mas carregavam o peso de séculos. Não de idade, mas de existência.

Rayhna não caminhava, ela retornava.

A névoa parecia se afastar à sua passagem, como se reconhecesse sua dona. As janelas se fechavam. Portas rangiam em silêncio. O mundo inteiro se curvava sem querer.

Nevaris ainda estava como ela lembrava.

Ou quase.

Algumas ruas haviam mudado de nome, pintadas de branco por alguma prefeitura que nunca existiu. Placas tortas anunciavam com sarcasmo “Zona de segurança”. Mas não havia segurança ali. Não para quem sabia o que Nevaris escondia debaixo da terra. Nem para quem conhecia a verdadeira história da vila.

Ela passou por uma farmácia nova. Moderna. Estéril. Fria.

Piscou devagar, sentindo um certo incômodo nos olhos ao ver tanto vidro e luz fluorescente. Aquilo não pertencia àquele solo antigo.

Mais à frente, um homem olhou para ela por trás de uma cortina. Devia ter uns setenta anos. Talvez oitenta. O olhar dele tremeu ao vê-la.

Rayhna inclinou levemente a cabeça. Ela se lembrava dele — ou pelo menos, de quem ele foi.

Chamava-se Marek. Era neto de um dos sete caçadores que participaram do cerco contra ela, no século XVII.

Ela o perdoou. Mas não esqueceu.

Seguiu.

A praça central ainda tinha o poço de pedra negra. Já não era mais usado, mas ninguém ousava destruí-lo. Nem os mais céticos.

A água dali nunca secava. E sussurrava à noite. Alguns diziam que o poço estava amaldiçoado. Outros diziam que era só superstição.

Rayhna sabia o que era.

Chegou diante da casa grande.

Na fachada, as paredes estavam cobertas de hera escura, como veias adormecidas. As janelas, seladas por dentro. A porta, intacta. Nenhum sinal de arrombamento. Nenhum sinal de abandono.

Parecia ter sido fechada por alguém que sabia que ela voltaria.

Rayhna pousou os dedos sobre a madeira.

Sentiu.

A textura era nova, mas o cheiro… o cheiro ainda era do século antigo.

Havia cravos queimados, sangue seco, madeira de carvalho e um toque sutil de alfazema — resquício de um feitiço de contenção.

Fechado por Nyx, só podia ser.

Ela forçou a maçaneta. Nada.

Encostou a testa na porta.

E sussurrou uma única palavra:

— Soluneth.

A tranca estalou. Um rangido baixo soou, como se a casa respirasse pela primeira vez em muito tempo.

A porta se abriu sozinha.

Lá dentro, o escuro não era apenas ausência de luz. Era presença.

O ar estava pesado. Não por sujeira. Mas por lembranças demais no mesmo espaço.

Rayhna deu um passo para dentro.

O piso de madeira rangeu, não em protesto, mas em reconhecimento.

Estava tudo quase como ela deixara. As tapeçarias rasgadas nos mesmos lugares. Os livros dispostos em prateleiras tortas. O espelho coberto por um pano vermelho.

E na mesa central, repousava algo que ela não esperava encontrar intacto: o relicário de prata.

Ela se aproximou lentamente.

O objeto era antigo. Século XVII. Gravado com símbolos proibidos, forjado por mãos que já estavam mortas muito antes dela nascer. Ou antes de renascer.

Dentro dele, havia apenas uma mecha de cabelo escuro — o que restou de alguém que ela não se permitia lembrar.

Ela tocou o relicário.

E uma dor aguda percorreu sua espinha.

Memórias invadiram.

📜 Era noite. Ela estava cercada. Tinha os pés descalços, o corpo fraco, e o ventre sangrava. Havia perdido o que nem chegou a ver. Vozes gritavam. Tochas acesas. E ele… ele não estava lá. Prometeu que viria. Que a salvaria. Mas Lucien nunca chegou.

Rayhna afastou a mão. A visão cessou.

Seus olhos, que estavam calmos e caramelo, começaram a escurecer, e num segundo se tornaram vermelho sangue.

A casa reconheceu o estado dela.

Luzes se acenderam sozinhas — não elétricas, mas chamas frias, azuladas, que surgiram em castiçais antigos. O espelho tilintou levemente sob o pano vermelho. E no fundo da sala, uma porta se abriu devagar.

Um sussurro escapou de lá:

— Você voltou mesmo…

Rayhna não respondeu. Sabia de quem era a voz.

Nyx.

Mas não era uma presença física. Era um resquício. Uma projeção guardada para ser ativada caso Rayhna retornasse.

A voz de Nyx ecoou, etérea:

— O que procuras não está mais onde deixaste. E o que deixaste… nunca te perdoou.

Rayhna permaneceu em silêncio. Andou até a estante e retirou um dos livros escondidos sob o piso — um grimório antigo, encadernado com couro de fera extinta.

Abriu.

As páginas estavam em branco.

Mas quando ela passou o dedo, as palavras surgiram em vermelho escuro.

Escritas não com tinta, mas com sangue antigo.

Ela leu. E sorriu.

— A profecia ainda respira — murmurou.

Rayhna virou-se e encarou o espelho coberto.

Com um gesto firme, retirou o pano.

Nada refletia.

Nem a sala. Nem ela.

Só uma escuridão profunda. E uma silhueta ao fundo, imóvel, de olhos azul acinzentado.

Lucien.

Ele não estava ali.

Mas estava.

Rayhna tocou o vidro frio com a ponta dos dedos.

— Você me sente… e isso já basta.

Virou as costas.

E a casa, como se entendesse que a hora havia chegado, fechou a porta atrás dela sozinha.

Mais populares

Comments

blue lock

blue lock

Expectativas lá no alto pro próximo capítulo, ansiosa demais! 😬

2025-07-07

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!