Nevaris, a vila que esqueceu o tempo
A névoa parecia respirar.
Descia das colinas em silêncio, como se tivesse memória. Como se soubesse exatamente por onde caminhar para encontrar o que restou de um tempo esquecido. Era espessa e lenta, cobrindo as pedras da estrada e engolindo aos poucos os portões de madeira carcomida que marcavam a entrada de Nevaris.
O mundo parecia suspenso ali.
As casas mantinham as mesmas janelas de madeira torta, telhas de barro negro cobertas de musgo, varais onde nunca se viam roupas. O tempo não envelhecia aquela vila — apenas a mantinha adormecida, presa entre o que foi e o que não devia mais ser tocado. Quem passava por Nevaris não olhava para trás. E quem morava ali… fingia que nunca teve para onde fugir.
Mas naquela manhã sem sol, alguém cruzou o limite do que ainda se podia considerar humano.
Rayhna.
Seus passos não faziam som, mesmo ao pisar em folhas secas ou gravetos partidos. A floresta recuava com sua presença. As sombras pareciam se deitar aos seus pés. Usava preto dos ombros até o chão — um vestido de tecido denso e fluido, como se fosse feito da própria noite. Os cabelos negros caíam soltos até a cintura. E os olhos… não pertenciam mais a este mundo.
Caramelo.
Suaves e intensos, como âmbar aquecido, cintilavam sob a névoa. Olhos que carregavam silêncio, memória e algo inexplicável. Era o tom que ela mantinha quando o mundo ainda não a havia ferido. Quando o controle estava intacto.
Mas não duravam assim por muito tempo.
Nevaris estremeceu quando ela voltou.
A primeira janela que rangeu, rangeu por medo. O sino velho da igreja — abandonado desde o último ritual de luto — vibrou levemente, sem vento algum para tocá-lo. O chão absorvia o eco de seu andar como se reconhecesse quem retornava. Como se soubesse que não poderia resistir.
Rayhna não olhava para os lados. Conhecia aquelas ruas. Não com os olhos. Com a alma. Cada pedra, cada ruína, cada rachadura no portão do antigo castro no alto da colina — tudo já vivia nela.
Mas agora ela era outra.
Não era mais a menina que fugiu coberta de sangue e promessas. Não era a aprendiz de Nyx. Não era a mulher que amou Lucien Solvek como se amar fosse viver.
Agora ela era o resultado do que todos eles quebraram.
Parou diante da antiga estalagem. Ainda estava ali, como uma cicatriz na paisagem. Madeira apodrecida, letreiro caído no chão. Não precisava entrar. Ali foi onde ouviu a primeira mentira. Onde disseram que ele não voltaria. Onde ela acreditou.
O céu escurecia, embora ainda fosse cedo. Nevaris vivia em um estado eterno de quase-noite. Como se a luz do dia não tivesse mais força para atravessar as muralhas invisíveis que cercavam a vila. Era proteção. E era prisão.
Rayhna seguiu. Passou pelas pedras do antigo altar onde os caçadores de sombras selavam seus pactos. Tocou o sangue seco no tronco partido da árvore do meio-dia. Sentiu a lembrança que ainda latejava sob sua pele. Tudo ali carregava o cheiro do que nunca foi resolvido.
Chegou ao centro da vila.
Um círculo de pedra negra, marcado com runas que só os olhos dela ainda conseguiam ler. No meio, o símbolo apagado do Khar’eth Sulum. O pacto proibido. A marca da união que não deveria existir. Tantos tentaram destruí-lo com fogo, magia e sal. Mas ela ainda o via. Ainda o sentia. Como se nunca tivesse saído de dentro dela.
Rayhna ajoelhou-se no centro.
O frio não a incomodava. A poeira, o silêncio, as vozes que sussurravam entre as ruínas… eram todos velhos conhecidos. Ela pousou a palma da mão sobre a pedra mais escura e fechou os olhos.
Um vento soprou do nada. Mas era um vento que trazia nomes. E um deles era o que ela mais temia.
Lucien.
Ela o sentiu.
Não com os sentidos comuns — mas com aquela parte esquecida do corpo, onde as almas se reconhecem antes do toque, antes da fala. Ele estava vivo. Não perto. Não longe. Mas presente. Como uma lâmina enterrada que nunca foi removida.
Seus olhos abriram devagar.
Agora não eram mais caramelo.
Vermelho sangue.
A cor surgia quando algo dentro dela mudava. Quando o passado voltava. Quando o instinto acordava. Quando o nome dele era pronunciado mesmo sem som.
Rayhna não chorava mais.
Já havia chorado o suficiente quando acreditou que ele a amava. Quando implorou por respostas. Quando perdeu o que nunca chegou a segurar nos braços. Agora, o que existia era outro tipo de dor — aquela que transforma amor em arma.
Ela se levantou.
Atrás dela, a névoa começou a girar lentamente, como se dançasse ao som de algo antigo. A vila assistia em silêncio. Mesmo os corvos estavam calados.
— Eu voltei — disse ela, não para alguém, mas para a própria terra.
Seu tom era calmo, mas carregava o som do que quebra sem estalar. Era a voz de quem já morreu por dentro, e voltou mesmo assim. Não para pedir. Mas para fazer lembrar.
Rayhna passou os dedos sobre o símbolo apagado do chão.
Sussurrou algo em uma língua esquecida.
A pedra tremeu. A marca brilhou.
Mesmo morta há tanto tempo, Nevaris respondeu.
E em algum lugar distante, muito além da vila adormecida, Lucien ergueu os olhos com o coração em guerra.
Ele a sentiu.
E soube: a escuridão que esqueceram de vigiar, estava de volta.
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Atualizado até capítulo 30
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