Capítulo 02 -Antes da primeira cicatriz

O mundo parecia calmo demais.

Elara ainda estava sentada na cama, as mãos pequenas agarradas aos lençóis como se o tecido fosse a única prova de que aquilo era real. A respiração vinha em ondas curtas e rápidas, como se a qualquer instante o ar fosse sumir de novo, como antes da execução.

Mas não havia dor. Nem gritos. Nem correntes.

Só o canto distante dos pássaros e o perfume de flores novas entrando pela janela entreaberta.

Seu quarto.

As cortinas bordadas com heras douradas, o espelho trincado no canto esquerdo - uma cicatriz que ela mesma deixara ao atirar uma escova anos atrás, em um acesso de raiva silenciosa. Tudo estava ali. Intocado.

Um leve estalo a trouxe de volta. A porta se abriu com cuidado, e por um instante Elara quase esperou ver um soldado, um carrasco... mas não.

Era ela.

- Juno?

A mulher parou no limiar, segurando uma bandeja. Tinha os mesmos olhos gentis, os cabelos ruivos presos em um coque desajeitado e os dedos ainda manchados de tinta, como sempre.

O rosto dela se iluminou ao ver Elara acordada.

- Minha pequena, você acordou!

Juno atravessou o quarto em passos largos e suaves, como se temesse que a menina desaparecesse de novo. Colocou a bandeja sobre a mesa e se ajoelhou diante da cama. - Está tudo bem? Dormiu demais... me deixou preocupada.

Elara apenas olhou para ela. Queria responder. Dizer tantas coisas. Que sentia falta, que havia morrido, que estava de volta. Mas tudo se prendeu na garganta.

- Eu... eu tô aqui - sussurrou.

- Está, sim - Juno sorriu e segurou sua mão com ternura. - Com fome? Trouxe pão com geleia de amoras. Daquelas que você gosta, lembra?

Elara assentiu, tentando engolir o nó na garganta. Aquele era o toque mais próximo de amor que conhecera na infância.

Juno nunca foi só uma babá. Ela era o que mais se aproximava de uma mãe.

- Juno... - a voz saiu fraca, mas firme. - Que dia é hoje?

A mulher arqueou uma sobrancelha, confusa. - Você bateu a cabeça, minha flor? Hoje é dia dezessete do mês de Lírion.

Dezessete de Lírion. O mês das flores.

Elara fechou os olhos. Quase podia ouvir os sinos da primeira vez em que ouvira essa data. Era a primavera antes do seu primeiro baile.

Antes da decepção.

Antes da primeira cicatriz profunda.

- Que ano?

- Oitocentos e setenta e dois da Era Solar, por quê?

Elara ofegou. Estava exatamente onde imaginava. Faltavam sete dias.

Sete dias para o baile de primavera.

- É verdade que... eu posso ir ao baile esse ano? - perguntou, forçando a voz a soar infantil, curiosa.

Juno sorriu. - Mas é claro! Você completou oito anos semana passada, lembra? Vai usar um vestido novo, com cetim azul e bordados de prata. Está animada?

Na outra vida, ela estivera. Muito.

A primeira vez em que poderia andar pelos salões com música, comer doces até passar mal, e talvez - só talvez - ser notada pelo avô ou por algum nobre da corte.

Mas a animação durou pouco. E o motivo ainda doía.

Ela quis aprender a dançar.

Lembrava do salão iluminado, das garotas mais velhas rodopiando graciosamente em pares. Elara se escondeu na sombra de uma pilastra e, quando ninguém olhava, deu alguns passos, imitando os giros com cuidado, tentando parecer leve e encantadora. Por um instante, se sentiu como uma princesa de verdade.

Até esbarrar em Roland, seu primo mais velho. Ele caiu ao chão como se tivesse sido empurrado por um touro.

Os risos foram abafados. Os olhares, afiados.

E então veio ele.

Seu tio Mardon, o principe mais velho . Aquele que sempre a odiou com uma ferocidade silenciosa.

- "Você é uma vergonha," - ele dissera diante de todos, ajudando o filho a se levantar. - "A filha bastarda de uma princesa traidora e de um bruxo qualquer. Acha que pode dançar entre nós?"

As palavras envenenaram o salão como uma praga.

Elara foi arrastada dali.

E no dia seguinte, o rei acatou a sugestão de Mardon:

Ela não iria ao baile.

E quando tentou desobedecer e aparecer mesmo assim...

O castigo a fez desmaiar. Ajoelhada no altar para repensar seus erros, horas sem receber comida ou bebida. Foi o castigo pela única travessura que fez na vida.

- Estou muito animada - mentiu, disfarçando o tremor na voz.

Juno tocou seu rosto, afastando um cacho rebelde da testa.

- Vai ser lindo, meu amor. Dessa vez vai ser tudo perfeito.

Dessa vez.

Sim. Dessa vez seria diferente.

- Posso... - Elara mordeu o lábio. - Posso ver o vestido hoje?

- Pode, claro! - Juno se levantou com um brilho nos olhos. - Vou buscá-lo depois do almoço. Mas agora, precisa comer. E depois, banho. Você cheira a sono.

Elara soltou um riso fraco. Pela primeira vez em muitas vidas, algo nela aquecia.

Enquanto comia as amoras lentamente, os pensamentos fervilhavam.

Tinha sete dias.

Seja lá quem ou que a tivesse trazido de volta, a colocou no início de sua desgraça, bem à tempo de mudar a visão da nobresa sobre ela.

Sete dias.

E desta vez, ela dançaria. Nem que tivesse que virar o castelo de cabeça para baixo.

...꧁༒༻ Fim do Capítulo 2 ༺༒꧂...

Se você voltasse ao passado...  seria para perdoar ou se vingar?

Elara está de volta — e agora, nada será como antes.

Comenta o que você faria no lugar dela!

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Comments

Isabel Bel

Isabel Bel

Bem, se ela está tendo a oportunidade de refazer, é porque existe uma saída, somos resultados de escolhas, ela agora pode escolher outro caminho, ser forte e reverter a história, quanto a vingança, às vezes não precisamos fazer muito, pois a maldade colhe maldade, e em uma história é mais fácil ter justiça, continue atualizando por favor 🙏🙏🙏🥰🥰🥰

2025-07-04

3

Lilith_

Lilith_

Juno parece uma fofa, aquelas babás leais de manhwa

2025-07-04

2

Lilith_

Lilith_

Depois de morrer o que não seria calmo?

2025-07-04

2

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