um grito silencioso

A chuva caía fina, quase tímida, sobre a copa das árvores, criando um som ritmado que preenchia a pequena cabana. Aurora observava as gotas deslizando pelo vidro da janela, como se buscasse nelas alguma pista de quem era. Mas tudo dentro dela continuava em branco. Como uma página arrancada de um livro.

Sentada na poltrona perto da lareira, com as pernas cobertas por uma manta grossa, ela apertava uma caneca de chá com as duas mãos. Sentia-se fraca, cansada. Mas o que mais doía era o vazio. A sensação de não pertencer a lugar algum.

— Não posso continuar assim — murmurou para si mesma. — Eu preciso me lembrar de alguma coisa…

Levantou-se devagar, ainda tonta pelos dias de febre, e caminhou até um espelho antigo pendurado na parede. O reflexo a encarou de volta: pele pálida, cabelo castanho desalinhado, olhos claros e assustados.

— Quem é você? — sussurrou.

Por instinto, tocou o pescoço, como se esperasse encontrar um colar, uma medalha, qualquer pista. Nada. Nem mesmo as roupas com que foi encontrada diziam algo. Eram bonitas, mas estavam rasgadas e sujas. Luxuosas demais para alguém comum, e ainda assim... ela se sentia tão frágil quanto qualquer outra pessoa perdida no mundo.

O som de madeira rangendo anunciou a entrada de Gael.

— Você deveria estar descansando — disse ele, sem levantar a voz.

— Já descansei demais — respondeu ela, virando-se lentamente. — Estou presa aqui. Presa dentro de mim mesma.

Gael colocou um pequeno cesto sobre a mesa. Estava cheio de raízes, folhas e frutas colhidas na floresta.

— Pode não parecer, mas aqui você está mais livre do que imagina.

— Livre? Sem saber quem sou, de onde vim, ou se alguém está me procurando?

— Às vezes, não saber é um alívio. — Ele tirou o casaco molhado e pendurou perto da lareira. — O mundo lá fora pode ser cruel. Aqui você está viva. E segura.

Ela caminhou até ele, os olhos fixos nos dele.

— Por que você vive aqui, Gael?

Ele hesitou, depois pegou uma faca para cortar algumas raízes. Preferiu responder com as mãos ocupadas.

— Porque o mundo lá fora também me machucou. E porque aqui... eu posso fingir que não existo.

— Você também está fugindo.

Gael parou de cortar. Por um segundo, o silêncio voltou a reinar entre eles.

— Eu não fugi. Eu fui deixado para trás. Há muito tempo.

Aurora sentiu um aperto no peito. Uma parte dela se reconhecia naquela dor. Mesmo sem lembrar de sua história, sabia o que era solidão. Sabia o que era ser usada, manipulada… embora não conseguisse ainda ligar os pontos.

Naquela noite, após o jantar simples, ela pediu algo inesperado:

— Me mostra onde você me encontrou.

Gael a observou em silêncio.

— Não é seguro. Está chovendo. E você ainda está fraca.

— Por favor. Talvez… talvez o lugar me ajude a lembrar.

Ele pensou por um momento, então cedeu com um aceno.

Vestidos com capas e botas pesadas, os dois caminharam pela trilha escorregadia. A floresta era densa, viva. Galhos rangiam com o vento, folhas se agitavam como mãos tentando agarrá-los. Aurora sentia o cheiro úmido da terra, o frio mordendo a pele, e algo mais: uma inquietação crescente.

Gael parou perto de uma clareira, apontando.

— Foi ali. Você estava caída, inconsciente, com a cabeça sangrando. Tive que carregar você até a cabana.

Ela se aproximou devagar. O chão ainda guardava marcas — ou talvez sua mente estivesse tentando criá-las. Encostou em uma árvore, fechou os olhos…

E então vieram as imagens. Rápidas. Fragmentadas.

Um carro. Um grito. Vidro estilhaçado. Um homem. Um sorriso que não era feliz. E olhos... olhos escuros demais.

Aurora cambaleou.

Gael a segurou antes que caísse.

— O que foi?

Ela levou as mãos à cabeça, tentando conter a dor que explodia em flashes.

— Eu vi… alguém. Um homem. Ele... ele sorriu. Mas era um sorriso cruel. Ele me viu… caindo.

Gael a olhou, tenso.

— Você se lembra quem ele era?

Ela tentou responder, mas a dor era intensa demais. Apenas balançou a cabeça, as lágrimas misturando-se à chuva.

— Eu não sei. Mas… eu acredito que ele queria me ver morta.

De volta à cabana, já deitada e tremendo sob os cobertores, Aurora lutava contra a febre que retornava. Gael, de pé ao lado dela, segurava sua mão com cuidado.

— Você está segura agora — murmurou. — Eu prometo.

Mas no fundo, ele sabia que prometer segurança era perigoso. Porque agora... ela não era só uma estranha perdida. Era uma mulher com inimigos. E eles provavelmente não parariam até encontrá-la.

E até lá, o mundo lá fora usava sorrisos falsos, enquanto afiava as facas por trás.

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Dara20_

Dara20_

Minha fuga favorita.

2025-07-02

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