Na manhã seguinte, Stephanos Theodorakis Vasilis pediu que chamassem o gerente do hotel. O pedido soou como ordem discreta: sem voz alta, sem pressa, mas com uma firmeza que fazia as pessoas se moverem.
O escritório administrativo ficava no segundo andar, com janelas altas e largas, por onde a luz de inverno entrava mansa. Sobre a mesa do gerente havia um vaso com crisântemos pálidos e uma pilha de formulários. O cheiro era de café fresco e papel. Quando Stephanos entrou, o gerente se levantou de imediato, alisando o paletó, nervoso como alguém que repassa mentalmente todos os protocolos para não errar.
— Senhor Vasilis, é um prazer recebê-lo. — A voz do gerente saiu mais aguda do que ele gostaria. — Em que posso ajudar?
Stephanos não se sentou de imediato. Preferiu encostar os dedos no encosto da cadeira, como se precisasse tocar algo sólido para não perder o fio do que sentia. Seus olhos azuis tinham um brilho contido, diferente do olhar duro das reuniões. Era um brilho de inquietação.
— Preciso de informações sobre uma funcionária. — Pausa breve. — Uma camareira.
O gerente prendeu o ar, a pele empalideceu um tom. As palavras saíram atropeladas:
— Houve algum problema, senhor? Alguma inconveniência? Ela… ela o importunou? Ofendeu, de alguma maneira?
Stephanos franziu o cenho. Não havia impaciência no gesto, mas espanto. A cabeça negou, lenta.
— Não. — A voz veio grave e baixa. — Pelo contrário. Ela não me incomodou em nada. Trabalha muito… e em silêncio. Eu a vi de manhã, vi à noite. — Ele inclinou um pouco o corpo para a frente, como quem confessa uma preocupação íntima. — Que horas essa moça descansa?
A pergunta, simples, pareceu deslocar algo no ar. O gerente relaxou os ombros, e, com o primeiro suspiro sincero do encontro, se sentou e apontou a cadeira em frente. Stephanos acomodou-se, enfim. Havia uma delicadeza rara naquele homem alto, acostumado a comandar. Ele não queria um dossiê para um capricho; queria compreender.
— O nome dela é Isadora Rivera Walsh — começou o gerente, escolhendo cada palavra como se temesse feri-la. — Está aqui conosco há dois anos. Veio quando completou dezoito. Desde então, é uma das funcionárias mais pontuais e corretas que já tivemos.
Stephanos assentiu devagar. O gerente prosseguiu:
— Ela trabalha em dois turnos. A maioria das pessoas não aguenta esse ritmo, o senhor sabe. Mas Isadora… ela insiste. Costuma cobrir faltas, pega serviço extra. — O homem olhou para a caneca de café, como se buscasse coragem no amargor. — O motivo é a família. O pai está em depressão profunda há cerca de dois anos.
Os olhos de Stephanos seguraram a informação sem piscar. O gerente, percebendo a atenção sincera, avançou:
— O pai se chama Edward Walsh. — E, antes que a dúvida surgisse, completou, com firmeza: — Quarenta e três anos. Ainda é um homem novo, mas — engoliu em seco — pelo que Isadora deixou escapar, ele nunca superou a morte da esposa. A mãe de Isadora morreu no parto. O senhor entende?
Silêncio. Os crisântemos parecem inclinar-se, tristíssimos, sobre a mesa.
— Ele criou a menina sozinho — continuou o gerente, agora num tom baixo, quase respeitoso. — Sustentou a casa até ela completar dezoito. Quando a menina foi aprovada para a faculdade… ele já não conseguia sair de casa. A depressão o paralisou. Isadora desistiu dos estudos e veio pra cá. Desde então, trabalha assim: dois turnos. — Apertou o lábio inferior, controlando a emoção. — Ela paga o psicólogo do pai, os medicamentos, a comida, a luz… tudo. É reservada, fala pouco. Honesta. E, acima de tudo… — o gerente fitou os olhos de Stephanos, para que a verdade não perdesse peso — uma boa filha.
As últimas três palavras caíram na sala com a força de algo sagrado. Stephanos recostou o corpo, levando os dedos à ponta do nariz, respirando fundo. Na cabeça, a imagem de Isadora ajeitando o casaco de Edward na noite anterior reapareceu com a nitidez de um quadro: a mão dela, leve, bafejada de cuidado; o beijo resignado do pai na testa da filha; o taxi partindo devagar. Ele ouviu, dentro de si, um estalo discreto — o tipo de som que a vida faz quando muda de direção.
— Existe alguma norma que limite tantos turnos? — perguntou, voltando à praticidade, mas sem perder a gravidade humana do momento. — Férias? Escalas? O que vocês podem fazer por ela?
O gerente endireitou-se.
— Fazemos o que está ao nosso alcance. Escalas rotativas, folgas legais, revezamentos. Mas… — e sorriu de canto, orgulhoso e impotente ao mesmo tempo — ela pede para trabalhar mais. TROCA folgas por horários que permitam acompanhá-lo no psicólogo. Às vezes chega atrasada quinze minutos porque deixou a comida do pai pronta. A gente fecha os olhos para o relógio… porque ela nunca falha com o serviço, nunca. Se um lençol está mal esticado, ela volta e refaz. Ela não aceita caridade, senhor. Aceita oportunidade.
A última frase fincou ferro no peito de Stephanos. Não aceita caridade. Aceita oportunidade. Ele conhecia muito bem a diferença. Crescera vendo o mundo confundir uma coisa com a outra — confundirem piedade com respeito, esmola com justiça.
— Obrigado — disse, por fim, erguendo-se. O gerente também se levantou, ainda sem saber se tinha feito demais ou de menos. — E , Stephanos hesitou, lutando contra a fronteira tênue entre cuidar e invadir — não a sobrecarreguem para me agradar. Não mudem a escala dela por minha causa. Não quero que achem que estou pedindo privilégios.
— Sim, senhor — respondeu o gerente, aliviado. — Posso dizer, no entanto, que o senhor elogiou a discrição dela, se isso for útil ao moral da equipe?
Stephanos sorriu de leve, e o sorriso não era de magnata. Era de homem.
— Pode. Diga que um hóspede muito exigente reconheceu excelência onde poucos enxergam.
Quando saiu, a luz do corredor pareceu mais clara. Talvez fosse apenas a manhã avançando; talvez fosse o mundo reorganizando-se dentro dele.
No lobby, Stephanos não tomou o elevador imediatamente. Parou diante do quadro de avisos da equipe, um mural interno que, por descuido de alguém, fora deixado visível. Ali, em letras pequenas, a escala dos turnos se espalhava como um tapete de horas: nomes à esquerda, horários à direita. Isadora R. Walsh — 07h às 15h // 18h às 23h. Alguém riscara a caneta e anotara, num canto: “terça, consulta — ajustar saída 16h/retorno 19h”.
Ele sentiu a garganta apertar. Que horas essa moça descansa?
Nos degraus da escada rolante, olhou os próprios sapatos italianos, a sola perfeita, e pensou nos sapatos pretos simples que vira nos pés dela, puídos na borda. Pensou nas próprias mãos, largas, que nunca precisaram esfregar uma pia. E então pensou nas mãos de Isadora, vermelhas de produto químico, a pele um pouco áspera, tão pequenas dentro das dele na noite anterior. Uma vergonha boa, daquela que acorda a consciência, subiu-lhe ao rosto. Houve tanto luxo na minha vida, pensou, e tão pouco essencial.
Caminhou até o restaurante e pediu um café simples. O maître ofereceu uma lista de grãos, chamou o nome de fazendas, sugeriu notas de chocolate e caramelo. Stephanos ergueu o olhar azul e disse, com gentileza:
— O da casa, por favor. Bem quente.
Porque, naquele dia, ele queria o essencial.
Do outro lado do hotel, no vestiário feminino, o rumor corria como vento entre cortinas:
— O gerente foi chamado pelo grego…
— Ih, será que deu problema com alguém?
— Dizem que é sobre a Isadora.
— Sobre a Isadora? Aquela menina quase não fala…
Isadora prendeu o cabelo com o elástico surrado, sentiu a pele do rosto aquecer. Soube, pelo frio que subiu das pernas, que o assunto era ela. Instintivamente, ajeitou a barra do uniforme e respirou fundo para segurar o coração. Seria repreensão? Ela revista mentalmente cada quarto, cada toalha, cada canto de rodapé. Estava tudo em ordem. Deveria estar.
— Isadora — chamou Marcie, surgindo à porta com expressão que misturava cuidado e neutralidade de chefe. — O gerente gostaria de falar com você por cinco minutinhos. Não se preocupe, você não está em apuros.
As palavras “não está em apuros” caíram como água fria e morna ao mesmo tempo. Isadora assentiu e caminhou com a dignidade que aprendeu para si: costas eretas, passos discretos, olhar na altura do horizonte.
O gerente a recebeu em pé, abriu a cadeira, ofereceu um copo d’água.
— Sente-se um instante, Isadora.
Ela sentou, rígida.
— Recebi elogios sobre você. — A frase veio de leve, mas com a intenção de romper o gelo. — Um hóspede… importante, digamos, fez questão de reconhecer sua discrição e seu zelo.
Isadora piscou, desnorteada.
— Elogios? — repetiu, como se testasse uma língua nova.
— Elogios — confirmou o gerente, sorrindo. — Disse que você trabalha muito, que não incomoda ninguém, que faz o que tem de ser feito com excelência. — O homem pousou os cotovelos na mesa, inclinando-se. — Não se assuste com os boatos. Você não está sob observação negativa. Pelo contrário.
Isadora baixou o rosto por um segundo, e, nesse intervalo, algo tremeu nela. Alívio e medo andando de mãos dadas. Porque elogios eram bons, mas também perigosos para quem sempre preferiu o abrigo do anonimato.
— Sim, senhor. — A voz dela veio pequena, afinada pelo cansaço. — Posso voltar ao piso?
— Pode. E… — ele ergueu a mão, chamando-a de volta ao presente — qualquer coisa que precisar, Isadora, qualquer ajuste de horário para o seu pai, você me procura. A gente dá um jeito.
O nome “pai” é sempre uma corda esticada por dentro. O rosto dela cedeu um milímetro, só um, mas foi suficiente para o gerente entender que havia ali um oceano.
— Obrigada — disse, e o obrigada trazia o peso de todas as coisas que ela não podia dizer: estou cansada, estou com medo, eu aguento.
Saiu de lá como entrou: de cabeça erguida. Mas por dentro, o peito batia em outra cadência. Stephanos tinha dito seu nome. Stephanos havia pedido para conversar. Stephanos agora, de algum modo, tocava as bordas do mundo dela sem quebrar as cerâmicas.
Ela não sabia se era bom.
Sabia apenas que era novo.
No início da tarde, Stephanos subiu para a sala de reuniões com as pastas de contrato debaixo do braço e o pensamento longe. Seus assistentes, acostumados ao aço do seu foco, estranharam o sobretudo de mansidão que o cobria. Ele iniciou a reunião do jeito certo — números, prazos, cláusulas de confidencialidade —, mas a mente, como um pássaro teimoso, voltava ao pátio interno onde Isadora passara correndo, cabelos loiros num coque torto, as mãos segurando uma pilha de toalhas como quem segura o mundo para ele não cair.
— Senhor Vasilis? — o consultor americano interrompeu, com tato. — Sobre o prazo de entrega…
— Trinta dias — respondeu de pronto, sem olhar a planilha. — Com inspeção. — E, só então, encarou a projeção, retomando o comando. O aço voltou à voz. — Multa por atraso, dez por cento. Cumpriremos.
O pássaro sossegou por um tempo. O homem dos negócios se pôs de pé, novamente. Só que agora aquele homem carregava no bolso um pedaço de verdade que não tinha antes: o essencial.
No início da noite, quando as luzes do saguão se tornaram mais amarelas e o piano do bar começou a tocar standards antigos, Stephanos se aproximou do balcão do restaurante. O maître reconheceu-o de longe.
— Senhor Vasilis, jantará no salão?
— Mais tarde. — Ele mirou a lista de reservas; não por desconfiança, mas por curiosidade sincera. — Diga-me, por favor: o horário de intervalo da equipe de limpeza… costuma ocorrer neste turno? Não quero interferir, apenas… — procurou a palavra certa — calibrar os meus horários para não atrapalhar.
O maître piscou, surpreso com a delicadeza inesperada de um homem que podia, se quisesse, mandar parar o hotel.
— Costuma haver uma pausa entre 19h e 19h20 para quem está no segundo turno. É curto, senhor.
Curto. Tudo na vida dela parecia curto: o intervalo, o fôlego, o descanso.
— Traga-me um prato leve às 19h em mesa discreta — pediu. — E… — a ideia chegou como brisa — um chá simples. De camomila. Se houver.
— Haverá — disse o maître, com um sorriso invisível.
Stephanos não tinha certeza do que estava fazendo. Só sabia que não podia forçar a porta de ninguém. Isadora não aceitava caridade. Ele pensou, então, no que poderia oferecer que não soasse como moeda: tempo. Atenção. O tipo de presente que se dá sem embrulho.
Isadora encostou o carrinho num ponto cego do corredor, respirou fundo e checou o relógio: 19h07. O estômago doía como quem protesta por esquecimento, mas o corpo já aprendera a funcionar com pouco. Luan, o garçom, cruzou com ela, carregando uma bandeja.
— Vai fazer a pausa? — perguntou, cúmplice.
— Vou só pegar água — respondeu, por reflexo.
— Pega chá hoje. — O sorriso dele tinha generosidade. — Eu vi que sobrou camomila. Vai te fazer bem.
Ela riu de leve, agradecendo, e chegou à área interna do restaurante pelo corredor de serviço. O calor perfumado de comida boa a envolveu como abraço. O piano tocava “Someone to Watch Over Me”, e, por um segundo, ela quis acreditar que alguém a observava para cuidar, não para julgar.
Deu dois passos. E parou.
Ele estava ali. Não no centro, não como dono da sala, mas numa mesa discreta, perto da janela, o prato ainda intocado, uma xícara de chá soltando vapor à frente. Os olhos azuis, quando a viram, não pediram nada. Ofereceram lugar.
Isadora pensou em recuar. Recuou meio passo. Então lembrou do gerente: “Elogios”, “discrição”, “excelência”. Lembrou do pai dizendo, naquela manhã: Vai, filha, trabalha. Eu fico bem. O mundo é grande, mas você é maior. O mundo é maior, Isadora, repetiu por dentro. E foi.
— Boa noite, Isadora. — O nome dela, nos lábios dele, não soou íntimo demais nem protocolar demais. Soou certo.
— Boa noite, senhor Vasilis.
— Stephanos — corrigiu, com o mesmo cuidado de quem devolve um objeto frágil ao lugar.
Ela olhou para a xícara.
— É para mim?
— É. — Ele sustentou o olhar sem pressa. — Camomila. Parece um milagre em noites difíceis.
Ela sorriu de leve, sem se desculpar por estar cansada.
— Obrigada.
Sentou-se. Não havia pressa, não havia pressões. Havia, pela primeira vez em muito tempo, tempo. O tempo de dois seres humanos aprenderem a respirar no mesmo compasso sem se invadirem.
— Hoje conversei com o gerente — disse ele, simples, porque a verdade simples é a que mais respeita. — Pedi que não mudassem a sua escala por minha causa. — Pausa. — E pedi que te elogiassem oficialmente. Você merece ser vista pelo que faz quando ninguém está olhando.
Algo brilhou nos olhos azul-esverdeados de Isadora. Não era lágrima que pedisse pena. Era reconhecimento. Colocou as mãos ao redor da xícara quente, como quem abraça uma pequena fogueira.
— Obrigada por não tentar consertar a minha vida — disse, surpreendendo a si mesma com a coragem das palavras. — Eu sei consertar. Só que às vezes eu preciso — ela procurou a palavra e a encontrou no cheiro da bebida — pausar.
— Pausa concedida — ele respondeu, com um sorriso que alcançou os olhos. — Quantos minutos você tem?
— Doze.
— Então eu prometo não estragar nenhum deles.
Ela riu, curto, bonito. Conversaram do nada e do pouco: do clima que enganava na semana, de um livro que ela vira na biblioteca envidraçada do saguão, das cerejeiras de Atenas e das padarias de bairro que ainda fazem pão como se o mundo tivesse tempo. Ele não perguntou de Edward — não hoje. Não invadiu. Ela não perguntou de contratos — não hoje. Não fingiu interesse no que não é dela.
Quando o relógio mostrou 19h19, Isadora se levantou, grata e inteira, como quem volta para a guerra depois de um gole de água limpa.
— Obrigada pelo chá, Stephanos.
— Obrigado pela companhia, Isadora.
Eles não apertaram as mãos, não prometeram nada. Deixaram o ar prometer por eles: amanhã existe.
Isadora empurrou o carrinho de volta ao corredor e, enquanto o som do piano se perdia, pensou em algo tão simples que doeu de bonito: eu fui vista sem ser ferida.
Do outro lado da janela, Stephanos acompanhou a silhueta dela sumindo no corredor e percebeu que algo antigo dentro dele, duro como casco, começava a rachar. Interesse já não bastava para nomear. Tinha ali respeito, tinha admiração, tinha uma espécie de cuidado que não pede nada em troca.
“Uma boa filha”, ecoou a voz do gerente.
Ele levou a xícara vazia aos lábios, como se ainda houvesse chá, e pensou que, desde ontem, tudo o que era supérfluo na sua vida começou a ficar barulhento demais. E tudo o que era essencial — como uma camareira de vinte anos que segura o mundo com duas mãos cansadas — ficou claro, nítido, impossível de ignorar.
Do lado de fora, a noite se acendeu sobre a cidade. Lá dentro, duas pessoas seguiram trabalhando. Cada uma à sua maneira. Cada uma do seu jeito. Mas agora, os silêncios já se reconheciam.
E é assim que começam as coisas que valem a pena.
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Atualizado até capítulo 125
Comments
Anonymous
Demora de mas pra carregar o próximo capítulo mesmo pagando tô ficando cansada
2025-09-10
3
maria fernanda
ela tem medo de se apaixonar /Heart//Heart//Heart//Heart/
2025-07-12
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Fátima Silveira
Poxa estou amando essa história parabéns autora 😍😍😍😍
2025-09-09
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