"Pra mim você é cobra"

Espelhos Partidos — Manhã Seguinte

Na manhã seguinte, Alicia acordou assustada.

O outro lado da cama estava vazio. O travesseiro, intacto. 

Dante não dormira ali.

Ela virou o rosto devagar, sentindo o peso — não sabia se da noite agitada, do acidente ou de algo que ainda não conseguia explicar.

Então olhou o relógio no criado-mudo.

6:05.

Seu corpo congelou. 

O número piscava como uma sentença. 

A respiração ficou presa. As mãos tremeram. 

O coração acelerou.

Seis e cinco.

Lembrou-se do grito. Da mão pesada. Do gosto de sangue na boca.

— O café é às seis, não às seis e cinco, sua inútil — sussurrou a lembrança, cruel e viva.

O corpo reagiu antes da mente.

Saltou da cama, desceu as escadas correndo, ainda com a camisa de Dante. Os pés descalços batiam no chão de madeira como quem foge da morte. 

A dor no braço e nas costelas não era nada.

Mas, ao chegar na cozinha… tudo parou.

A chuva batia no teto e nas janelas envidraçadas. 

O cheiro era de café fresco. 

Havia pão cortado sobre uma mesa grande de madeira, manteiga aberta e uma caneca já servida ao lado de outra ainda vazia.

Emily estava animada demais para uma manhã chuvosa. 

Vestia o casaco lilás com botões em forma de coração e tentava arrumar sozinha os cabelos, enquanto cantava uma música inventada sobre o Thor ser um unicórnio disfarçado.

Dante estava ali. 

Encostado na pia, colocando um lanche na lancheira de Emily.

Calmo. 

Tranquilo.

Alicia congelou no batente da porta.

Ele se virou devagar. A expressão era séria, mas o olhar… avaliava.

— Bom dia... Não quis te acordar. Você precisava descansar — disse, com suavidade.

Ela tentou responder, mas a voz falhou. 

Olhou para o relógio de parede: 6:10.

Nada aconteceu.

Ela se aproximou, devagar.

— Tá tudo bem? — ele perguntou.

Ela assentiu, mesmo com os olhos úmidos.

Alicia sentou-se à mesa, ainda tensa. Hora ou outra olhava para o relógio, as mãos suavam, o corpo ainda em alerta.

— Mamãe… hoje é meu dia de levar o brinquedo da semana. Pode me levar na escola? Por favor? — perguntou Emily, com os olhos brilhando e os dedinhos cruzados no ar.

Antes que Alicia pudesse responder, Dante apareceu na porta da cozinha, já vestido com a jaqueta escura e o distintivo no cinto.

— A Vivian já está vindo. Ela vai levar a Emily hoje — disse, com voz calma, porém firme.

Emily parou de mastigar. 

O silêncio caiu como um cobertor frio.

— Mas… a mamãe pode — sussurrou, a voz pequena.

— Não hoje, flor. A Vivian está passando aqui, e o papai vai trabalhar — respondeu Dante, tentando suavizar. Mas a expressão da menina endureceu.

Emily desceu da cadeira devagar, abraçou a mochila contra o peito e ficou encarando o chão.

Todo o medo de Alicia sumiu. 

Ela só queria abraçar aquela menina.

— Emily... — Alicia ajoelhou-se à sua frente, para ficar na altura dela — Está tudo bem, meu amor. A mamãe vai outro dia, tá bem?

Emily não respondeu. Apenas assentiu com um aceno seco.

Mais tarde, quando a caminhonete de Vivian buzinou do lado de fora, Alicia tentou sorrir.

Emily, no entanto, virou-se para ela com os olhos cheios de lágrimas contidas e disse, num sussurro ofendido:

— Mamãe... eu não gosto da Vivian.

Alicia tocou o rostinho dela com delicadeza.

— Por quê, meu amor?

Emily olhou de lado, certificando-se de que Dante não estava ouvindo, e então se aproximou do ouvido da mãe:

— Eu ouvi ela falando no telefone... Disse que o papai vai ser dela. Que a casa também. E que, se tiver que suportar uma “catarrenta”, ela suporta.

Emily engoliu seco.

— Mas eu não sou catarrenta, mamãe. Sou só eu.

Alicia sentiu o chão sumir sob os pés. 

Abraçou a filha com força.

— Você é perfeita. Nunca deixe ninguém te fazer acreditar no contrário.

Emily suspirou no pescoço da mãe.

— Eu sei... Mas às vezes… queria sumir só um pouquinho.

Alicia fechou os olhos.

E, pela primeira vez desde que acordara naquele hospital… 

Ela desejou ficar.

Por Emily. 

Mesmo que tudo fosse mentira.

– Vivian: amiga ou cobra?

Vivian entrou sem pedir licença.

A porta se abriu como se fosse dela. Os saltos das botas estalaram no chão de madeira com autoridade. O perfume doce e forte chegou antes do sorriso.

— Dante, querido... — a voz era mel escorrendo sobre navalhas — me oferece uma xícara de café? Não tive tempo de tomar antes de sair de casa.

Ela caminhou até a cozinha como se já tivesse feito aquilo mil vezes. Talvez tivesse.

Alicia estava de costas, mexendo no café, ainda com a camisa dele, os pés descalços e o cabelo desgrenhado de quem acordou em meio a fantasmas. Na verdade, se pudesse, nunca mais tiraria aquela camisa — ela lhe dava uma estranha sensação de abrigo.

O silêncio foi cortado como vidro.

— Isabel... — Vivian parou na soleira, um sorriso arreganhado no rosto. — Nossa... você voltou, amiga... — a voz carregava mais surpresa do que afeto — estava com saudades.

A palavra amiga soou amarga.

O olhar de Vivian percorreu Alicia dos pés à cabeça, lento, avaliador. Parou tempo demais na camisa que ela usava. Tempo demais nos pés descalços. Nos cabelos desalinhados.

Alicia segurou a xícara com mais força. O calor do café queimava seus dedos, mas ela não soltou.

Ergueu o queixo com suavidade.

— Bom dia, Vivian.

Vivian forçou um riso.

— Bom dia. Nossa, que clima aconchegante por aqui. Sempre achei essa cozinha muito acolhedora.

Dante entrou em seguida. O mesmo jeito sério. Cumprimentou com um breve “Vivian” e um sorriso quase educado.

Ela ignorou o desconforto no ar.

— Vai me oferecer aquele café ou preciso me servir? — disse, e passou a mão de leve no peito dele.

Emily, sentada à mesa, apertou a boneca Luna contra o peito.

Vivian sorriu para a menina, mas o gesto era vazio. Plástico.

— Está linda hoje, Emily. Pronta para ir pra escola?

— Hum. — a menina respondeu sem olhar.

Vivian girou sobre os próprios calcanhares, os saltos batendo no chão como um aviso. Voltou a encarar Alicia.

— Você parece... diferente, Isabel — comentou, com falsa leveza.

— Renovada. Ou será só a camisa do Dante mesmo?

O ar ficou mais pesado. Mais denso.

Dante colocou a xícara na frente de Vivian, sem dizer nada. O silêncio dele era quase uma sentença.

Vivian pegou a xícara, mas não bebeu. Apenas sorriu.

Alicia respondeu com outro sorriso — pequeno, sereno, quase perigoso.

Levantou-se devagar. Não podia demonstrar fraqueza.

— Bom, eu mesma vou levar minha filha na escola.

Dante a olhou. Uma sobrancelha se arqueou, surpreso. Vivian escureceu o olhar.

Mas Emily...

Emily sorriu.

Alicia virou-se e saiu da cozinha com passos firmes.

Mas por dentro, estava tremendo.

Tremendo de medo.

Medo das consequências.

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