FAICAS

Eu sou Emily.

Tenho quatro anos. Meu pai diz que sou corajosa. A Luna, minha boneca, diz que sou mágica. Mas eu acho que sou só… eu.

A casa é grande demais para o meu tamanho. Faz barulho de tristeza quando fica silenciosa. Cada rangido do chão parece contar segredos que ninguém deveria saber. A cozinha cheira a biscoito queimado e a saudade, como se alguém tivesse deixado escapar um pedaço do coração ali.

Meu pai… ele sorri, mas é um sorriso que se esconde. Um sorriso que tenta não doer. Eu sei disso porque às vezes ele fecha os olhos e respira fundo, como se estivesse lembrando de algo muito feio.

Eu pedi ao Papai do Céu uma mamãe. Uma mamãe que pudesse fazer a casa rir, que fosse o coração daqui. Que cuidasse de mim, do papai, do Thor, que é o nosso cachorro, e da Luna, que é minha melhor amiga.

Minha mãe foi embora. Eu lembro do dia que ela não voltou. O papai disse que ela precisava de um tempo, mas o tempo foi passando… e ela nunca voltou.

Até que, um dia, ela apareceu. Diferente.

Ela me olhou como se estivesse me vendo pela primeira vez. Me abraçou apertado, como se tivesse medo de que eu sumisse. E quando me chamou de “meu amor”… eu senti que alguma coisa estava diferente.

Porque a minha mãe… ela nunca me chamou assim antes. Nunca.

Mas eu não contei pra ninguém. Porque o abraço dela era quentinho, e eu senti que podia ficar ali para sempre. Pela primeira vez, consegui dormir sem medo, sem os monstros escondidos nos cantos do quarto.

Meu pai também percebeu. Ele olha pra ela como quem tenta montar um quebra-cabeça que não se encaixa. Às vezes sorri, leve. Às vezes fecha os olhos, pesado, lembrando de coisas que nem eu posso imaginar.

E eu continuo aqui, observando. Tentando entender. Tentando sentir se isso é real. Se ela vai ficar.

Eu não sei se ela é mesmo minha mãe. Mas se for um sonho… eu quero que dure para sempre.

Porque sonhos podem desaparecer. Mas abraços quentinhos… esses ficam dentro da gente.

***

Na manhã seguinte, Alicia acordou com o coração disparado.

O outro lado da cama estava vazio. O travesseiro, intacto. Dante não dormira ali.

Ela virou o rosto devagar, sentindo o peso que apertava o peito — não sabia se era da noite agitada, do acidente ou de algo que ainda não conseguia nomear. Cada músculo do corpo parecia pronto para fugir, cada fibra em alerta.

O relógio no criado-mudo piscava: 6:05.

Seis e cinco.

O número ardia em seus olhos como uma sentença. A respiração travou, as mãos tremeram, o coração bateu descompassado. O grito voltou, vívido, junto com a mão pesada, o gosto metálico do sangue.

— O café é às seis, não às seis e cinco, sua inútil — sussurrou a lembrança, cruel e viva.

O corpo reagiu antes da mente. Saltou da cama, descendo as escadas correndo, ainda envolta na camisa de Dante. Os pés descalços batiam no chão de madeira como se cada estalo pudesse avisar a morte que ela fugia. A dor no braço e nas costelas era nada diante do medo que corria nas veias.

Mas, ao chegar na cozinha… tudo parou.

A chuva tamborilava no teto e nas janelas. O cheiro de café fresco se misturava ao pão recém-cortado e à manteiga aberta. A mesa grande, iluminada pela luz cinza da manhã chuvosa, parecia respirar calma.

Emily estava ali. Cheia de vida, mesmo em dia cinzento. Vestia casaco lilás, botões em forma de coração, tentava arrumar os cabelos sozinha e cantava uma música inventada sobre Thor, o cachorro, ser um unicórnio disfarçado.

Dante estava ali. Encostado na pia, arrumando o lanche da filha. Calmo. Tranquilo. O contraste com a tensão que ainda queimava no peito de Alicia era quase doloroso.

Ela congelou no batente da porta.

Ele se virou devagar. A expressão era séria, mas os olhos pesavam, avaliavam, buscavam algo entre o medo e a curiosidade.

— Bom dia… Não quis te acordar. Você precisava descansar — disse, com suavidade, mas firme, como quem sabe demais.

A voz de Alicia falhou. O relógio marcava 6:10. Nada do terror havia se repetido. Nada aconteceu.

Aproximou-se devagar, cada passo pesado no chão de madeira.

— Tá tudo bem? — perguntou Dante, e mesmo a simplicidade da frase fez o corpo dela se contrair.

Ela assentiu, olhos úmidos, tentando respirar, tentando se convencer de que ainda podia existir normalidade.

Alicia sentou-se à mesa, mas cada olhar para o relógio a fazia tremer. Suas mãos suavam, o corpo ainda em alerta máximo.

— Mamãe… hoje é meu dia de levar o brinquedo da semana. Pode me levar na escola? Por favor? — disse Emily, olhos brilhando, dedinhos cruzados no ar, esperança pura.

Antes que Alicia pudesse responder, Dante apareceu na porta da cozinha. Jaqueta escura, distintivo no cinto. Presença firme, controlada.

— A Vivian já está vindo. Ela vai levar a Emily hoje — disse, com voz calma, mas autoridade na medida certa.

Emily parou de mastigar. O silêncio caiu pesado, quase sufocante.

— Mas… a mamãe pode — sussurrou, quase em falsete, quase quebrando.

— Não hoje, flor. A Vivian está passando aqui, e o papai vai trabalhar — respondeu Dante, tentando suavizar. Mas a expressão da menina endureceu, rígida como uma estátua de dor contida.

Emily desceu da cadeira devagar, abraçando a mochila contra o peito. Ficou encarando o chão, em silêncio absoluto.

Todo o medo de Alicia derreteu. Ela só queria proteger, abraçar, fazer a dor daquela criança desaparecer.

— Emily… — ajoelhou-se à altura dela — Está tudo bem, meu amor. A mamãe vai outro dia, tá bem?

A menina não respondeu. Apenas assentiu, seco, firme, tentando controlar o que não podia.

Mais tarde, quando a caminhonete de Vivian buzinou do lado de fora, Alicia tentou sorrir. Mas Emily virou-se para ela, olhos cheios de lágrimas contidas, pegou a mochila e caminhou até a porta, passos pequenos, mas determinados.

Alicia ficou parada, sentindo o coração apertar. Cada respiração era lenta, quase dolorosa. Tentou gravar cada detalhe: a chuva, a cozinha, o cheiro do pão, o som do coração de Emily batendo junto ao dela. Um instante de normalidade que parecia raro demais para durar.

Ela sabia, profundamente, que cada manhã poderia ser um campo de batalha silencioso entre medo, esperança e amor.

Quando Dante deixou uma Emily chorosa no carro de Vivian e voltou para a cozinha, Alicia estava encolhida na cadeira, mãos trêmulas e nervosas.

Dante pegou o boné na bancada, sem olhar para ela.

— Estou indo trabalhar. Emily sai às quinze; eu a pego na escola.

— Eu… eu poderia ter levado ela — sussurrou Alicia, a voz falhando. — Ela queria que eu levasse.

Dante a encarou, frio.

— Ela também quis que você levasse… desde que entrou na escola. Mas você sabe ao menos a sala da sua filha? Não pense que pode voltar e bagunçar a vida dela, Isabel.

Alicia engoliu em seco, o corpo tenso.

— Eu…

— Se você tentar fazer mal à minha filha… eu juro, Isabel… eu destruo você.

Dante deixou o dinheiro na mesa, virou as costas e saiu. O vento da tarde entrou pela janela, carregando o peso do silêncio. O tempo parecia sombrio como o coração de Alicia.

Alicia ficou parada diante da porta, o peito apertado, a respiração presa. Seus olhos caíram sobre o dinheiro deixado na mesa — um gesto que dizia mais do que palavras poderiam. Por um instante, pensou em pegar tudo e desaparecer. Seria mais fácil. Muito mais fácil. Mas havia algo naquele lugar que a prendia, mesmo sem entender exatamente o porquê.

Ela se permitiu olhar em volta, como se a cozinha fosse um território a ser conquistado. O teto de vidro derramava luz sobre o espaço, refletindo nas grossas janelas que a circundavam, sustentadas por vigas de madeira que pareciam ter visto gerações. O aroma do azeite misturava-se ao pão ainda fresco na bisnaga sobre a mesa. Alicia deslizou os dedos pelos cantos da cozinha, imaginando risadas de crianças, o tilintar de pratos, pequenas aventuras escondidas entre armários de madeira. Cada detalhe parecia contar uma história não contada, uma vida vivida com disciplina e cuidado.

A sala a chamou em seguida. A lareira, silenciosa e majestosa, parecia guardar segredos em suas brasas apagadas. O sofá de couro marrom convidava a se sentar, a sentir a rotina de um homem ausente, a intimidade de uma casa que parecia respirar sozinha. A televisão permanecia desligada, como se a vista além das janelas — ampla, silenciosa, intensa — fosse mais importante do que qualquer tela.

Subiu as escadas devagar, absorvendo cada passo. O quarto de Emily estava cheio de cores suaves, brinquedos e unicórnios, como se a infância tivesse sido cuidadosamente preservada naquele espaço. Mas foi o quarto ao lado que a fez hesitar. A porta entreaberta exalava presença — forte, intensa, masculina. Uma lareira discreta, uma cama ampla e um criado-mudo com um livro aberto: A Arte da Guerra. O cheiro do ambiente era seco, marcante, e Alicia sentiu o ar pesado de disciplina e controle.

Uma fotografia chamou seu olhar: Dante em fuzileiro, cercado por quatro homens grandes, postura impecável. Os olhos azuis, profundos e tristes, pareciam atravessar o tempo. O cabelo curto, preto, a expressão grave, o corpo firme e imponente — cada detalhe gritava força, cada gesto, autoridade. Era um homem feito para comandar, para resistir, para fascinar.

A curiosidade a levou até uma pequena porta esquecida. Ao abri-la, um arsenal se revelou: armas alinhadas com precisão, coletes pendurados, facas afiadas, cada peça refletindo a mesma intensidade e rigor que dominava toda a casa. Alicia sentiu um arrepio subir pela espinha. A força daquele homem não estava apenas na foto ou nos livros. Estava ali, pulsando nas paredes, nos objetos, no silêncio carregado de história e poder. Ela queria fugir, mas ao mesmo tempo, queria explorar mais. Descobrir cada segredo que aquela casa escondia, cada pedaço da vida de Dante.

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