"A mulher que voltou a vida"

Alicia despertou com o apito ritmado de uma máquina. O cheiro de álcool queimava suas narinas. O corpo inteiro latejava. Respirar era um esforço. Tentou abrir os olhos, mas a claridade do teto cortou como lâmina. Fechou-os de novo.

Quis chorar.

Não por estar ali. Mas porque já estivera antes.

Outra dor. Outro quarto. O mesmo tipo de violência.

Naquela vez, fora o marido.

Mas quem escolhera a punição... fora a sogra.

Uma vozinha a trouxe de volta:

— Mamãe, tá me ouvindo?

Alicia.

Não.

Isabel.

— Emily, querida, a mamãe ainda precisa descansar — a voz adulta soou calma ao lado.

A menina ignorou. Aproximou-se devagar, arrastando a boneca. Alicia forçou as pálpebras a cederem. A luz feria, mas o sorriso da pequena furou a dor.

— Oi, Emily… — a voz saiu rouca, quebrada, como se tivesse atravessado quilômetros de sofrimento.

— Você não esqueceu meu nome! — ela abriu um sorrisão e ergueu a boneca. — Olha, a Luna também tava com saudade.

— Desculpa, filha... a mamãe... — Alicia engoliu seco. — Esqueceu o nome da Luna, mas nunca o seu.

Emily encostou a testa na dela. Um gesto simples. Devastador.

— O nome do papai é Dante. Caso você tenha esquecido também.

O coração de Alicia falhou um compasso. O olhar da menina era doce demais. Direto demais. Machucava pela inocência.

— Fiquei preocupada, mamãe... — disse, acariciando-lhe os cabelos.

— Vai ficar tudo bem, meu amor. Prometo. Quando eu melhorar, vou te encher de beijos.

Do batente da porta, Dante observava. Uniforme impecável. Braços cruzados. O rosto duro, marcado por silêncio.

Algo não batia.

A mulher na cama sorria demais. Se esforçava demais. Mantinha o tom doce, a voz calma — mas os olhos… os olhos não eram de Isabel.

Ele conhecia cada detalhe dela.

E aquela estranha, embora tão parecida, não era a mulher que abandonara sua filha.

Mas Emily estava sorrindo.

E por Emily... ele permaneceu em silêncio.

Emily tinha saído com a enfermeira, arrastando a boneca pelo corredor. O silêncio ficou pesado no quarto.

Alicia tentou ajeitar-se na cama, mas o corpo reagiu com dor. Quando levantou os olhos, encontrou o olhar dele.

Dante não se moveu. Apenas cruzou os braços no peito, a sombra da barba cerrada acentuando a dureza do rosto.

— Está confortável? — perguntou, sem emoção na voz.

Ela piscou devagar, tentando entender se era uma pergunta real ou apenas um teste.

— Eu… estou tentando — respondeu, a garganta arranhada.

Ele assentiu uma vez. O silêncio retornou, sufocante.

— A Emily sente sua falta — disse enfim. O tom não era acusador, mas também não havia calor. Era uma constatação, como um relatório de missão.

Alicia sentiu o coração acelerar.

— Eu também senti a dela… — murmurou, sem saber se a voz saía da forma correta.

Os olhos de Dante estreitaram-se. Ele não piscava.

— Espero que isso seja verdade. Porque ela acreditou em cada palavra sua.

Alicia respirou fundo, engolindo o nó na garganta.

— Eu… estou tentando lembrar… certas coisas. O acidente…

Dante inclinou-se para a frente, aproximando o rosto até que ela pudesse ver a intensidade fria dos olhos azuis dele.

— Não precisa se lembrar agora. O que importa é daqui pra frente. — Pausou, firme. — E daqui pra frente, não vou deixar Emily sofrer.

A frase soou como aviso. Não um grito, não uma ameaça. Apenas uma promessa.

Ele endireitou-se, recuando alguns passos até a porta.

— Descanse, Isabel. Você vai precisar de forças.

O som da porta se fechando ecoou fundo. Pequeno, metálico, mas foi o bastante para que Alicia se sentisse sozinha de verdade.

Ela soltou o ar devagar, como se tivesse segurado a respiração o tempo todo em que Dante estivera ali. O peito doía. Não apenas pelo impacto físico, mas pelo peso que carregava cada palavra dele.

Era estranho. O homem não havia levantado a voz, não havia feito um gesto brusco, sequer se aproximara de forma ameaçadora. Mas ela sentiu medo.

Medo não dele, mas do que ele escondia por trás do olhar inabalável.

Ele não confia em mim.

Essa certeza a atravessou como uma lâmina fria.

E o mais doloroso era que… fazia sentido.

Ela não era Isabel.

Não era a mulher que ele esperava encontrar.

Alicia fechou os olhos, tentando controlar o tremor nas mãos. Emily. Era isso que importava. A menininha que acreditava em cada sorriso, que encostava a testa na dela como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Era por Emily que ela precisava suportar aquela encenação.

Mesmo que Dante a observasse como se pudesse enxergar através de cada palavra, cada silêncio.

Ela girou o rosto para o teto, onde a claridade ainda queimava.

E pensou, com um frio na espinha:

Ele não vai gritar. Ele não precisa. Um homem como Dante só avisa uma vez.

Alicia puxou o lençol até o pescoço, como se isso pudesse protegê-la do peso daquela promessa.

 

Uma semana depois, Isabel saía do hospital amparada por Dante. O braço e as costelas doíam. Cada passo era uma batalha.

Mas não era a dor que a fazia tremer.

Era ele.

Ele era policial. Um homem treinado para reconhecer mentiras.

Ela lembrou de quando fugiu da primeira vez.

Uma viatura a encontrou.

Os policiais a levaram de volta pra casa.

E, ali mesmo, diante deles, veio o primeiro soco.

— Isabel, você está pálida — murmurou Dante. — Vamos voltar pro hospital.

Emily arregalou os olhos. Agarrou com força a mão da mãe.

— Eu estou bem — Alicia forçou um sorriso.

Mas os olhos de Dante eram perigosos.

Vigiavam. Pesavam. Julgavam.

Ela se virou para Emily:

— Eu vou ficar bem, meu coraçãozinho.

No banco de trás do carro, Alicia se acomodou devagar. Abraçou Luna contra o peito.

E olhou pelo retrovisor.

Quando viu aqueles olhos azuis, a olhando.

Ele estava encarando.

Firme. Silencioso.

Analisando.

Buscando a verdade.

E ela... cada dia mais afundada em mentiras.

Porque mentiras, quando começam, crescem.

E já era tarde demais para voltar atrás.

O carro avançava devagar pela estrada, mas Alicia sentia como se estivesse presa dentro de um tribunal silencioso. O juiz era Dante. O veredito, inevitável.

Ele não falava nada. Apenas dirigia. O silêncio do motor, o ranger seco dos pneus no asfalto, e os olhos dele refletidos no retrovisor eram suficientes para esmagar o ar nos pulmões dela.

Ela tentou se distrair olhando pela janela. Casas passando. Pessoas. O mundo seguia normal. Mas dentro do carro, não havia normalidade — só o peso daquele olhar azul.

Ele sabe.

O pensamento não dava trégua.

A cada segundo, Alicia sentia como se estivesse sangrando segredos, mesmo em silêncio.

— Está com dor? — a voz grave dele quebrou o ar.

Ela se assustou, demorou para responder.

— Um pouco… mas nada que eu não aguente.

Naquele instante, Alicia percebeu: não era a dor do corpo que ele estava medindo. Era a firmeza da voz. O tremor disfarçado. Ele estava ouvindo as falhas. Procurando as rachaduras.

No banco de trás, Emily segurava forte a boneca contra o peito. Os olhos dela iam de Dante para a mãe, como se tentasse ler o clima invisível que enchia o carro.

— Mamãe, você prometeu que ia ficar bem — disse, com a vozinha baixa, quase suplicante.

Alicia respirou fundo, forçou outro sorriso. O coração doía mais que as costelas.

— E vou, meu amor. Você só precisa confiar em mim.

Emily assentiu, mas não largou a mão dela. Os dedos pequenos, frágeis, pareciam implorar por segurança. Alicia fechou os olhos por um segundo, tentando absorver aquele toque.

Mentir para Dante era arriscado. Mas mentir para a criança?

Isso a destruía.

Olhou pelo retrovisor. Dante a encarava em silêncio. Não era uma acusação explícita. Mas era vigilância constante.

Dante ajustou o retrovisor.

— Se estiver doendo muito, me fala. Não precisa aguentar sozinha.

A delicadeza da frase desconcertou Alicia. Por um instante, ela quase acreditou. Quase baixou a guarda. Mas logo veio o frio na espinha: era isso que o tornava mais perigoso.

Ele sabia alternar o tom. O policial duro, o homem atento, e depois… o protetor. O protetor que confundia, que fazia o coração dela vacilar.

— Eu aguento — respondeu rápido, firme demais.

Ele não replicou. Apenas assentiu, como quem anota mentalmente um detalhe.

Emily cantarolava baixinho para a boneca. O som era doce, quase ingênuo. Mas para Alicia, só aumentava o contraste: entre a criança alheia e o pai que parecia analisar cada respiração dela.

Quando voltou os olhos para o retrovisor, ele ainda a encarava.

Calmo. Quase sereno.

E era justamente essa serenidade que mais a aterrorizava.

Até às próximas linhas.

G.sandles😉

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