Capítulo 5: Segredos Não Contados

Os dias seguintes foram marcados por um estranho ritual de convivência entre o desconhecido e o improvável. Luna passava as manhãs cuidando dele, trocando as gazes, tentando controlar as febres repentinas e observando as cicatrizes que, por mais que ela insistisse em tratar, pareciam recusar qualquer tentativa de cura. As costas dele continuavam abertas, como se o próprio corpo rejeitasse a ideia de cicatrizar um ferimento tão profundo e simbólico. E enquanto ela se esforçava para manter uma rotina minimamente normal — indo à escola, respondendo à mãe com frases curtas para não levantar suspeitas e trancando bem a porta da sala antes de sair — o anjo caído permanecia ali, entre o sofá e o silêncio, observando cada canto da casa com olhos atentos e desconfiados. Não era de falar muito. Suas respostas continuavam curtas, secas, como se cada palavra fosse uma concessão que ele detestava fazer. Mas Luna, com sua curiosidade natural e a leveza de quem carrega uma vida de silêncios, continuava tentando arrancar dele qualquer vestígio de verdade.

As perguntas começaram de forma tímida, quase como conversas de um paciente e uma cuidadora. “Você sente fome?”, “Quer água?”, “Consegue dormir?”... Mas ele raramente dava respostas completas. O máximo que ela conseguia eram monossílabos ou olhares longos, como se cada frase que ele evitava dizer fosse um muro que ela precisava escalar. No entanto, quanto mais os dias passavam, mais ela percebia pequenas rachaduras naquela barreira de frieza. Havia momentos, breves e quase imperceptíveis, em que ele a observava de um jeito diferente… como se tentasse decifrar o motivo de alguém como ela, frágil, humana e assustadoramente normal, estar ali ao lado dele, cuidando de feridas que claramente eram muito mais profundas do que as visíveis na pele. Certa tarde, enquanto ela trocava os panos com cuidado, seus dedos encostaram de leve na pele dele, e naquele exato segundo, uma espécie de faísca invisível percorreu o ar entre os dois. Era como se uma corrente elétrica os atravessasse, fazendo ambos recuarem ao mesmo tempo, assustados com o contato.

Luna ficou sem saber como reagir. As bochechas coraram, o coração acelerou, e ela fingiu que nada tinha acontecido, voltando a concentrar-se nos curativos. Mas por dentro, o choque daquele toque ainda reverberava. Era a primeira vez na vida que ela sentia algo tão intenso com o simples contato da pele de alguém. Já ele, mesmo sem demonstrar, percebeu que algo estava mudando. Aquela menina, com toda sua timidez e falta de vivência, estava quebrando a redoma de indiferença que ele se esforçava tanto para manter. Em vários momentos, ele se pegava observando-a de canto de olho, analisando seus gestos simples, o jeito como ela mordia o lábio quando estava nervosa ou como franzia a testa enquanto preparava compressas de água morna. Ela era humana demais… e exatamente por isso… perigosa demais para ele. O anjo sabia que quanto mais se aproximasse, mais difícil seria controlar o que sentia. E o pior: quanto mais tempo passasse ali, mais fraco ele ficaria.

Num fim de tarde especialmente silencioso, Luna resolveu tentar uma abordagem diferente. Sentou-se no chão, ao lado do sofá, e começou a contar coisas sobre si mesma. Falou das noites em que se sentia invisível, dos dias em que desejava sumir do mundo, das vezes que chorou escondida no quarto para não preocupar a mãe. Disse que sempre sonhou com algo extraordinário acontecendo na vida dela, algo que a tirasse daquela existência repetitiva. “E agora você apareceu...”, ela disse, com um sorriso triste, sem esperar resposta. Por mais que tentasse disfarçar, a voz dela tremia de emoção e de medo. Ela sabia que estava se abrindo demais, expondo uma vulnerabilidade que sempre fez questão de esconder. Mas ali, naquele momento, parecia certo fazer aquilo. Do sofá, ele a observou em silêncio. Algo dentro dele começou a se contorcer, como se cada palavra dela fosse um golpe nas paredes internas que ele construiu por séculos.

Naquela noite, enquanto Luna subia as escadas rumo ao quarto, tentando processar tudo o que estava acontecendo, ele permaneceu sozinho na sala, olhando para o teto com os olhos fixos. Pela primeira vez desde que caiu, sentiu algo que não conseguia nomear. Não era só dor física, não era só ódio... era uma espécie de inquietação estranha, uma sensação de que aquela menina... aquela humana... estava mexendo com partes dele que deveriam ter morrido junto com suas asas. Fechou os olhos, respirou fundo, e pela primeira vez em muito tempo… permitiu-se baixar a guarda… mesmo que apenas por alguns minutos.

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