O tempo não parou — ainda que, vez ou outra, Henrique desejasse isso ao olhar para a filha mais nova e ver o quanto ela havia crescido.
Aurora completara 9 anos com o mesmo brilho no olhar que Elisa carregava quando falava da vida. Era uma menina sensível, observadora e cheia de energia criativa. Tinha o costume de colecionar folhas caídas com formatos diferentes, escrever pequenos bilhetes de carinho em folhas coloridas e deixá-los escondidos pela casa: no armário do pai, entre as almofadas do sofá, dentro dos cadernos da escola.
Na escola, Aurora era conhecida por ser gentil com todos, mas havia uma menina em especial com quem ela dividia segredos e sonhos: Luna. As duas pareciam se entender com um simples olhar. Luna era esperta, de sorriso largo e riso fácil — sempre disposta a inventar histórias mirabolantes no recreio ou criar códigos secretos nas provas de matemática. Eram inseparáveis. Aurora dizia que Luna era sua “irmã escolhida pelo coração”.
A professora dizia que Aurora tinha um olhar “maduro para a idade” e uma sensibilidade que tocava os colegas. Era boa aluna, mas sem arrogância. Preferia trabalhos em grupo e se saía bem liderando com doçura.
Em casa, o vínculo com o pai era feito de cumplicidade. Eles tinham rotinas só deles: o café da manhã de domingo com panquecas (mesmo quando Henrique queimava algumas), os passeios na livraria, e a hora de dormir — onde, mesmo já grande, Aurora gostava de ouvir as histórias que Henrique inventava com personagens inspirados nela e na mãe que ela conhecia apenas pelas fotos e pelas palavras amorosas do pai.
Henrique tentava, com todos os gestos, manter Elisa viva em Aurora. Falava da mãe com carinho, mostrando os diários antigos, os vídeos de momentos simples, os sorrisos eternizados em molduras pela casa.
Por outro lado, a relação com Lívia já não era tão próxima.
Lívia agora tinha 15 anos, os fones de ouvido sempre pendurados no pescoço, e os olhos muitas vezes voltados para o celular. Estava naquela fase entre o silêncio e os rompantes, onde o mundo adulto começa a se aproximar, e a infância parece cada vez mais distante. Ainda que morassem juntos e compartilhassem o mesmo teto, as conversas entre as duas irmãs haviam diminuído.
Aurora sentia falta das tardes em que Lívia desenhava com ela ou das noites em que as duas dividiam o cobertor para assistir a filmes antigos.
Agora, Lívia preferia o quarto, as músicas baixas e o mundo fechado que ela mesma criava.
Henrique percebia o afastamento e tentava, aos poucos, costurar os laços sem forçá-los. Sabia que o tempo fazia suas próprias curvas e que, um dia, talvez, as duas se reencontrassem de forma mais natural.
Aurora, no entanto, guardava seus sentimentos em cartas que não entregava. Cartas para a irmã. Pequenos pedidos de atenção. Breves lembranças da infância dividida.
Mas continuava sorrindo, porque, dentro dela, ainda acreditava que amor de irmã não se apaga — apenas adormece.
E mesmo nos dias mais silenciosos, ela deixava um bilhetinho na porta do quarto de Lívia, assinado com caneta rosa:
"Oi, maninha. Espero que seu dia tenha sido bonito. Se quiser, estou aqui. Com amor, Aurora."
O sol daquela manhã iluminava tudo com um dourado suave, e Aurora se arrumava com pressa, como de costume. A mochila já estava nos ombros quando ela apareceu na cozinha, ajustando a presilha azul no cabelo.
— Pai, vamos! Se a gente sair agora, ainda dá tempo de passar na papelaria!
Henrique, encostado no batente da porta, sorriu observando-a. A camisa social dava lugar a uma blusa mais casual, algo incomum para uma terça-feira.
— Hmm… Sobre isso… — disse ele, pegando as chaves do carro. — Hoje não tem escola.
Aurora parou, confusa.
— Como assim? Mas eu preciso estudar para a prova de ciências!
— A prova vai te esperar. Hoje é dia de outra coisa — disse ele, piscando. — Confia em mim?
A menina franziu a testa, hesitante, mas assentiu. No caminho, olhava pela janela tentando decifrar o mistério.
Pouco tempo depois, estavam estacionados em frente à sorveteria que Aurora mais gostava. Era um lugar pequeno, com mesinhas coloridas, guarda-sóis listrados e um cheirinho de waffle no ar.
— Sorvete…? — perguntou Aurora, os olhos brilhando. — No meio da semana?
— Com calda dupla, se quiser — disse Henrique, tentando disfarçar a ansiedade que crescia em seu peito.
Sentaram-se numa mesa perto da janela. Aurora escolheu o de morango com chantilly, e ele pediu o de creme com cobertura de chocolate.
Ela ainda parecia desconfiada. Mexia o canudo no copo d’água com as sobrancelhas franzidas.
— Pai… por que esse "passeio secreto"?
Henrique apoiou os braços sobre a mesa e respirou fundo. O momento havia chegado.
— Aurora… Você sabe que eu e sua mãe vivemos uma história muito bonita, né?
Ela assentiu, olhando para ele com atenção.
— Sei sim. Você sempre me conta. Ela era incrível.
Henrique sorriu, emocionado.
— E vai ser sempre. Mas a vida também traz novas histórias, novos começos. E eu queria te contar que… tem alguém especial na minha vida.
Aurora desviou o olhar, surpresa.
— Especial… tipo... uma namorada?
Henrique se inclinou levemente para frente, tentando ser o mais gentil possível.
— Mais do que isso. Ela se chama Cláudia. E nós vamos nos casar.
O silêncio caiu entre os dois. Aurora baixou os olhos para o pote de sorvete, mexendo-o com a colher, sem realmente comer.
— Mas… você já tem a mamãe.
Henrique sentiu o coração apertar. Levantou-se devagar e sentou-se ao lado da filha, passando o braço por seus ombros.
— E sempre vou ter. A mamãe foi — e sempre será — o amor que me deu você. Nada nem ninguém vai mudar isso, meu amor. Mas a vida não para, e a gente também pode ser feliz de outras formas. A Cláudia não veio para substituir ninguém. Ela veio para somar.
Aurora o olhou com os olhos marejados, sem chorar, mas visivelmente confusa.
— Ela sabe da mamãe?
— Sabe sim. E respeita muito a nossa história. Ela quer te conhecer melhor, sem pressa. E hoje… ela queria te dizer oi.
Nesse instante, a porta da sorveteria se abriu e Cláudia entrou, segurando uma pequena caixinha de papel com um laço lilás. Era uma mulher de traços serenos, cabelos castanho-escuros presos em um coque simples, vestia uma blusa branca de algodão e uma calça jeans clara. Seus olhos imediatamente buscaram os de Aurora, e o sorriso era gentil — não forçado, nem exagerado. Apenas… sincero.
Henrique se levantou.
— Cláudia… essa é a Aurora.
Cláudia se aproximou com calma, agachando-se para ficar na altura da menina.
— Oi, Aurora. Eu esperei muito pra te conhecer. Eu sei que esse momento é importante, então vim só dizer que estou feliz por estar aqui… e que trouxe algo que me lembrou você.
Estendeu a sacolinha, que Aurora pegou, ainda em silêncio. Dentro, havia um pequeno caderno de capa florida e uma caneta com brilhos — daqueles que Aurora adorava.
— Eu vi na papelaria semana passada — disse Cláudia. — E pensei: “tem cara de alguém que gosta de escrever bilhetinhos coloridos”.
Aurora levantou os olhos, surpresa.
Henrique sorriu, aliviado com a delicadeza do gesto.
— Obrigada… — disse Aurora baixinho, ainda digerindo tudo. — Eu gosto mesmo.
A menina olhou para o pai, depois para Cláudia, e pela primeira vez, abriu um sorriso tímido.
Henrique apertou sua mão com carinho.
E ali, naquela sorveteria, entre colheradas doces e verdades delicadas, um novo capítulo começava a se formar.
Aurora havia devorado o sorvete e, aos poucos, voltava a sorrir. Quando avistou o pequeno playground no fundo da sorveteria — com um escorregador, balanços coloridos e uma casinha de madeira —, seus olhos brilharam.
— Posso ir lá um pouquinho, pai?
Henrique sorriu, acariciando seus cabelos.
— Pode sim, meu amor. Só não vá muito longe, tá?
Ela assentiu e saiu correndo, a mochila quicando nas costas. Cláudia a observou por alguns segundos, até se virar para Henrique com um sorriso que se apagou lentamente.
— Você não acha que está mimando demais essa menina?
Henrique arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— Como assim?
Cláudia deu um gole no suco que ainda estava sobre a mesa, apoiando o copo com mais força do que o necessário.
— Você quer que ela goste de mim, claro. Mas me parece que você faz tudo girar ao redor dela. Você está me incluindo na vida de vocês… ou me encaixando onde ela deixa?
Henrique a olhou com seriedade, tentando entender onde aquela conversa estava indo.
— Cláudia, Aurora é uma criança. E perdeu a mãe muito cedo. Ela precisa de tempo… e de segurança.
Cláudia cruzou os braços, recostando-se na cadeira.
— E eu? Você acha que é fácil pra mim entrar numa história onde a “mulher perfeita” morreu, e tudo ainda gira em torno dela? Ela tem lugar na casa, nas fotos, no coração de vocês… Eu tô tentando, Henrique. Mas me sinto sempre em segundo plano.
Henrique respirou fundo. A voz saiu mais firme do que ele esperava.
— Você sabia da minha história desde o início. Elisa foi — e será — uma parte da minha vida que eu nunca vou apagar. E Aurora… é filha dela. Não tem competição aqui, Cláudia.
Ela fingiu sorrir, mas os olhos diziam outra coisa.
— Eu sei. Claro. É que… eu só não quero ser a mulher que “tenta ocupar um espaço que já está ocupado”. Se for assim… talvez eu nunca caiba de verdade.
Henrique passou a mão no rosto, exausto.
— Não é uma disputa, Cláudia. Mas exige paciência. Você disse que estava disposta a construir isso comigo, lembra?
Cláudia se levantou devagar, ajeitando a blusa impecável, e antes de sorrir, lançou um olhar rápido para Aurora no balanço, rindo sozinha.
— Estou. Mas espero que você também esteja disposto a me colocar do seu lado. E não atrás dela o tempo todo.
Henrique não respondeu de imediato. Ficou apenas olhando a filha, balançando-se com as pernas no ar e os cabelos soltos ao vento.
Naquele instante, um arrepio sutil percorreu sua espinha — o tipo de aviso silencioso que o coração envia quando pressente que nem tudo será tão simples quanto parece.
Henrique continuava em silêncio, o olhar preso em Aurora, como se aquilo o ajudasse a respirar melhor. Cláudia, notando que havia ultrapassado um limite, voltou a se sentar com um suspiro dramático e, após alguns segundos, falou com a voz baixa, melosa:
— Me desculpa, Henrique...
Ele desviou o olhar, sem responder de imediato. Cláudia apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos diante da boca, e piscou devagar — expressão abatida, vulnerável, calculadamente frágil.
— É que… tudo isso é novo pra mim. Eu nunca estive com alguém viúvo… com uma filha, com uma história tão… cheia de camadas. Talvez eu tenha falado demais. Fui dura, eu sei.
Henrique a observou de soslaio. Ainda que seu corpo relaxasse um pouco, o olhar permanecia cauteloso.
— Foi um pouco duro, sim — disse ele, com honestidade.
Cláudia sorriu com tristeza, os olhos umedecidos, como quem encena a dor de não ser compreendida.
— Eu só quero fazer parte. Só isso. Não quero te perder. Não quero que pense que estou competindo com ninguém… Porque não estou, de verdade. Talvez eu esteja só… com medo. Medo de não dar conta. Medo de não ser o suficiente pra vocês.
Ela deixou escapar um leve soluço e apoiou a mão no braço de Henrique, suave, delicada, envolvente.
— Me dá um voto de confiança, Henrique. Eu posso ser melhor. Posso aprender. Me ajuda a entender o que é essa família nova que a gente está tentando construir?
Henrique passou a mão nos cabelos, respirando fundo. Aos poucos, a barreira interna que havia subido começou a ceder. Ele ainda não sabia por que aquela fala o incomodava mais do que o confortava — talvez porque soasse ensaiada, quase perfeita demais.
— Cláudia… — disse ele, agora com um tom mais brando — Se vamos seguir com isso, você precisa saber: Aurora vem em primeiro lugar. Sempre. Isso não vai mudar.
Cláudia assentiu rapidamente, como se já soubesse disso — mas o sorriso dela era forçado, daqueles que não chegam aos olhos.
— E eu vou aprender a amar ela também. Prometo.
Henrique ainda hesitava, mas se permitiu um meio sorriso, puxando a mão dela para um carinho breve.
No fundo da sorveteria, Aurora corria de uma ponta a outra da casinha de madeira, os cabelos esvoaçando no fim de tarde. Um riso alto escapava dela, leve, inocente.
Cláudia a olhou mais uma vez. E mesmo com o rosto dócil… seus olhos, por um segundo, endureceram.
Como se, naquele instante, nascesse em silêncio o primeiro traço de um ciúme perigoso.
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Atualizado até capítulo 21
Comments
Regina Jose
não gostei da claudia
2025-08-13
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