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A Primeira Fratura

A chuva caía fina sobre o teto do velho edifício em Palermo, compondo uma sinfonia suave que contrastava com o caos dentro da mente de Allegra. Ela trancou a porta do quarto que ocupava nos fundos da pensão e se sentou diante do notebook surrado, que escondia como se fosse um segredo de Estado. O silêncio da madrugada era seu cúmplice.

Os dedos tremiam levemente sobre o teclado. Um copo de vinho tinto — barato e forte — repousava ao lado do computador. Na tela, arquivos criptografados piscavam em sequência. Códigos, datas, nomes. Tudo vindo de uma fonte anônima, que jurava ter provas sobre o que realmente aconteceu com o pai dela.

Juiz Alberto Vasconcellos.

Assassinado brutalmente numa emboscada, alegadamente a mando da máfia italiana. Mas o que Allegra descobrira nas últimas semanas — e agora confirmava naquela noite — era uma bomba que ameaçava explodir suas certezas mais profundas.

Ela clicou num dos arquivos. A imagem de uma assinatura digitalizada surgiu na tela.

Assinatura de liberação de provas – Dante Morelli.

Assinatura de Dante? Como ele poderia ter tido acesso ao processo antes mesmo da sentença ser redigida? Como um Morelli — herdeiro de uma das famílias mais temidas do submundo — poderia ter qualquer ligação formal com o Tribunal de Justiça Federal?

Ela ampliou a imagem. Leu e releu. E então viu a data. Era anterior ao assassinato.

— Isso não faz sentido... — sussurrou, colocando uma mão na testa. — Se ele sabia... por que não impediu? Ou... será que ajudou?

O ar parecia pesar dentro do pequeno quarto abafado. Allegra se levantou, andando de um lado para o outro. As imagens dela e de Dante se beijando na noite anterior surgiram como flashes indesejados. O toque dele. O olhar cortante. O fogo entre eles.

E se ele estiver envolvido?

A pergunta queimava.

Ela abriu mais um arquivo. Fotos. Filmagens de câmeras de segurança. Um vídeo de baixa resolução mostrava três homens encapuzados entrando no carro blindado do juiz. Um deles parecia hesitante. Tinha a mesma estatura de um dos capangas pessoais de Dante.

Carlo Benedetti.

Allegra conhecia aquele rosto. Já o tinha visto em festas, jantares privados... e, mais recentemente, atrás do ombro de Dante, como um cão fiel.

Ela fez um print da imagem, ampliou o rosto disfarçado. Usou um software rudimentar para comparar traços. Quase 87% de semelhança. Não era prova, mas era indício.

Indício de que meu pai pode ter sido traído por alguém que hoje protege o homem que estou tentando destruir.

Ela fechou os olhos por um instante, sentindo o mundo girar. Sua missão estava ficando pessoal demais. Emocional demais. E isso era perigoso.

Na manhã seguinte, Allegra acordou com batidas fortes na porta. Pulou da cama num sobressalto. Estava só de camiseta e calcinha. Correu para vestir uma calça jeans e uma blusa.

— Quem é? — perguntou, ainda com a voz rouca.

— Entrega para Sofia. Da parte do Senhor Morelli.

Ela abriu a porta e viu um homem com um envelope preto. Pegou o objeto e fechou novamente, o coração acelerado.

Dentro, havia uma chave dourada. Um cartão:

“A verdade é um luxo que poucos podem pagar. Estou lhe dando acesso. Use com sabedoria.” — D.

A chave parecia antiga, forjada à mão. E tinha o símbolo da família Morelli — um M estilizado com duas serpentes entrelaçadas.

Allegra levou horas até descobrir onde a chave servia. Era para um cofre escondido numa das salas de armazenamento do cassino, atrás de uma parede falsa.

Lá dentro, encontrou uma caixa de madeira de carvalho. Ao abrir, deparou-se com pastas, documentos e fitas cassete antigas.

— O que diabos é isso? — murmurou, puxando o primeiro dossiê.

E então, as peças começaram a cair...

Um relatório interno. Memorandos. Fotos. O nome do pai dela constava numa lista de juízes que, supostamente, haviam sido cooptados para proteger negócios de fachada ligados a bancos clandestinos.

— Isso é mentira… isso é montagem… — mas a voz dela vacilou.

Porque a caligrafia do pai estava ali. Um bilhete manuscrito, assinado, confirmava a participação dele em um tipo de “colaboração silenciosa” com a máfia, a fim de “preservar vidas e negociar justiça de forma discreta”.

Allegra caiu de joelhos, os olhos marejados.

— Não… pai… por quê?

Mas não era só isso. A última fita continha uma gravação de uma conversa entre seu pai e um homem que só poderia ser… Dante.

“Você sabe que não posso proteger você para sempre, Alberto.”

“Não quero proteção. Quero paz para minha filha. Se algo me acontecer… cuide dela. Mesmo que ela te odeie um dia.”

A voz de Dante soou mais jovem, mas ainda carregada de poder.

“Ela vai me odiar, Alberto. Vai jurar vingança. Mas eu vou protegê-la… nem que isso me custe tudo.”

Allegra apertou o gravador contra o peito. A respiração descompassada, o peito arfando como se faltasse oxigênio no mundo.

Dante sabia. Ele sabia desde o começo. E, mesmo assim, me deixou me aproximar. Ou… talvez tenha permitido de propósito.

Deixou o gravador cair no chão, o eco metálico enchendo a sala vazia.

Agora ela não sabia mais o que era real. Seu pai era herói ou cúmplice? Dante era vilão ou protetor?

A fratura estava aberta. E nada voltaria a ser como antes.

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Alexandra Moreira da Silva

Alexandra Moreira da Silva

quem é Allegra

2025-05-22

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