– Devorando a Verdade
As palavras ecoavam como sinos fúnebres na cabeça de Allegra.
“Mesmo que ela me odeie um dia, eu vou protegê-la…”
Sentada no chão frio da sala secreta, entre pastas velhas e poeira de verdades esquecidas, Allegra sentia o mundo ruir ao seu redor. Seu coração batia rápido, pesado, como se quisesse fugir do próprio corpo. O gravador ainda estava em sua mão trêmula, a fita rodando no modo de repetição. A voz de Dante. A voz do pai.
Ela apertou os olhos, tentando conter as lágrimas, mas já era tarde. A dor transbordava. Não apenas pela morte de Alberto, mas pelo que ela agora sabia: ele não era o mártir perfeito que ela criara em sua memória. Havia pactuado com criminosos. Tinha feito escolhas... erradas, talvez justificadas, mas ainda assim sombrias.
E Dante... ele não era apenas o alvo da vingança. Era o guardião de um último desejo paterno.
“Se algo me acontecer… cuide dela.”
Aquilo cravou no peito de Allegra como uma faca torcida.
Levantou-se com dificuldade, como se carregasse chumbo nos ossos. Precisava encarar Dante. Precisava ouvir da boca dele cada resposta. Precisava... ver nos olhos dele se aquilo era verdade. Ou se tudo fazia parte de um novo jogo, uma manipulação perversa.
Ela guardou as fitas numa mochila, trancou novamente o cofre e saiu do cassino pelos fundos, sob o manto da noite.
O casarão dos Morelli se erguia como uma fortaleza iluminada por holofotes. Allegra caminhou pela calçada estreita, ofegante, com os dedos em volta da mochila como se ela contivesse dinamite.
— Senhorita Sofia? — perguntou o segurança do portão, ao vê-la se aproximar. — Está fora do horário...
— Me anuncia, Francesco. Ele vai me receber. — Sua voz era baixa, mas firme.
O segurança hesitou, mas finalmente cedeu. Minutos depois, a porta dupla se abriu, revelando Dante Morelli com a camisa aberta no peito, como se tivesse sido tirado de um filme noir. O cabelo molhado, os olhos escuros faiscando surpresa — e algo mais que ela não soube nomear.
— Eu esperava que você viesse... — ele disse, com um meio sorriso enigmático.
— Esperava mesmo? — Allegra entrou sem pedir licença, caminhando até o salão principal. — Esperava que eu encontrasse aquilo? Que escutasse aquela maldita gravação?
Dante fechou a porta atrás de si com um estalo. O sorriso desapareceu.
— Eu esperava que você finalmente estivesse pronta.
— Pronta pra quê? Pra descobrir que meu pai era mais parecido com você do que comigo? Que ele assinava documentos em favor da máfia?
Dante se aproximou devagar, mas manteve distância. Os olhos estavam atentos, cautelosos. Como se ela fosse uma bomba prestes a explodir. E talvez fosse.
— Ele não era como eu. — Dante disse. — Mas também não era o homem puro que você transformou em ícone. Ele estava num beco sem saída. Tentou proteger a Justiça de dentro... mas acabou pagando com a vida.
Allegra cerrou os punhos.
— Você sabia. Desde o começo. Você me deixou entrar na sua vida sabendo quem eu era. Sabendo o que eu queria...
— Sim.
A resposta direta foi um choque.
— Por quê? — ela sussurrou, a garganta apertada. — Por que não me afastou? Por que me deixou me envolver?
Dante respirou fundo, os olhos brilhando de dor contida.
— Porque eu prometi a ele. E porque, mesmo sem querer... eu me apaixonei por você.
Allegra recuou, como se tivesse levado um soco.
— Não... não diz isso.
— É verdade. Mesmo sabendo que você poderia ser minha ruína. Mesmo com seu ódio queimando por dentro. Eu me apaixonei pela mulher que você é... e por aquela garotinha que seu pai me mostrou numa foto, anos atrás. Aquela menina que ele jurou proteger. Aquela menina que agora quer justiça. Ou vingança.
Silêncio. Um silêncio denso, cruel, cheio de tudo o que não podia ser dito.
Allegra jogou a mochila no sofá com força. As fitas rolaram para fora, como uma confissão jogada à luz.
— Acha mesmo que pode me confundir com palavras bonitas? Que me dizendo que me ama eu vou esquecer tudo?
— Não espero que você esqueça nada, Allegra. Só quero que pare de carregar essa dor sozinha. Você precisa entender que o inimigo do seu pai não foi apenas a máfia. Foram os podres que ele tentou denunciar. Os políticos, os juízes corrompidos. A própria máquina da justiça.
Ela andou até ele, encurtando a distância. O rosto a centímetros do dele.
— Você não é o herói, Dante. É só mais um monstro elegante, escondido atrás de ternos caros e palavras convincentes.
Ele a olhou nos olhos, sem desviar.
— Talvez. Mas sou um monstro que nunca quis ver você quebrar. Mesmo que pra isso eu precisasse te enganar.
As palavras deles se entrelaçaram como lâminas. O desejo e a raiva colidiam no ar como eletricidade.
E então, ela o beijou.
Foi um beijo violento, desesperado, com gosto de lágrimas e promessas quebradas. Um beijo que dizia: eu te odeio. Um beijo que gritava: me salva de mim mesma.
Dante a segurou pela cintura, retribuindo com a mesma intensidade. Mas não havia ternura, só urgência. Eles se arrastaram até a parede, os corpos colidindo. As mãos dele apertaram a cintura dela, os dedos mergulhando nos cabelos soltos.
Mas Allegra o empurrou subitamente, ofegante, as mãos contra o peito dele.
— Isso não resolve nada. Eu ainda quero a verdade. Toda ela.
Ele assentiu, o olhar mais sombrio do que nunca.
— Então esteja aqui amanhã. À meia-noite. Eu vou te mostrar o que seu pai tentou esconder até o fim.
Ela o encarou por um momento, depois virou as costas e saiu da casa sem dizer mais nada.
Do lado de fora, a madrugada a recebeu com um vento frio. Allegra fechou o casaco e caminhou pela rua deserta, sentindo o peso de tudo o que descobrira.
Ela queria justiça. Queria verdades. Mas agora… queria também entender seu próprio coração.
E no fundo, uma nova dúvida nascia:
Se Dante for inocente… e se tudo que ela acreditava for mentira… quem, afinal, mandou matar seu pai?
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