A sala de jantar era ampla, austera. As paredes forradas a madeira escura, iluminadas por candelabros modernos de luz baixa. Ao centro, uma mesa comprida, de carvalho antigo. Apenas três lugares estavam preparados: no topo, uma cadeira ligeiramente mais elevada; nas laterais, duas mais discretas.
Ji entrou, guiado por um dos seguranças. Vestia-se com sobriedade: camisa escura, sem jaleco, postura direita. No bolso interior, ainda trazia o dossiê de Bianca, agora memorizado. O silêncio ali era quase sagrado.
Sentado como uma estátua de cerimónia, estava um homem com uma máscara dourada. Não era uma daquelas máscaras de baile veneziano. Era inteira, cobrindo todo o rosto, com detalhes em relevo, polida a ponto de refletir a luz do candelabro acima. Apenas os olhos estavam visíveis, frios, imóveis, inquisidores.
Ji parou de andar. Por um segundo, o tempo pareceu travar.
— Que porra é essa? — pensou, instintivamente, sem conseguir esconder o sobressalto.
No hospital, já tinha visto de tudo: mutilações, delírios, até famílias que choravam antes da hora. Mas aquilo era outro universo. Aquilo era um símbolo. A máscara brilhava como se fosse feita de ouro verdadeiro.
Ji arregalou os olhos. Não estava preparado para aquela visão. O instinto médico queria saber porquê, quem, o que aquilo significava. Mas o instinto de sobrevivência mandava calar.
— Sente-se. — falou a voz grave de Salvatore, como se a presença mascarada fosse a coisa mais banal do mundo.
Ji obedeceu lentamente, o olhar preso na figura. Só então reparou: nenhum dos seguranças a olhava diretamente. Era como se houvesse uma regra não escrita ou um medo muito antigo. O homem mascarado não se mexeu. Apenas observava.
Ji sentia os olhos dele sobre si como lâminas silenciosas. Mas havia algo na presença daquele homem que não permitia distrações. Era mais que estranheza. Era domínio. O tipo de presença que não precisava de levantar a voz para impor silêncio.
E então, a mulher de coque apertado entrou na sala com um único gesto: pousou à frente de Ji uma taça com vinho e um pequeno prato com pão.
— Este é o senhor Salvatore. — falou, sem emoção.
Ji quase não conseguiu disfarçar o espanto. O sangue gelou-lhe por um segundo.
Salvatore, era um homem mascarado. Seu pai não havia dito essa informação.
As peças reorganizaram-se subitamente na sua mente. Era por isso que todos o temiam sem o ver. Era por isso que ninguém olhava diretamente. Ele não era só o pai de Bianca, era o fantasma que governava com olhos vivos e rosto escondido. A máscara dourada continuava imóvel.
— Como pronunciar o seu nome?— perguntou Salvatore, a voz abafada pelo metal, mas clara como lâmina.
Ji endireitou a postura, sem hesitar.
— Kim, senhor.
Salvatore repetiu, arrastando ligeiramente a pronúncia como quem prova um vinho raro.
— Kim…
— Isso.
Um breve silêncio seguiu-se.
E então, inesperadamente, Salvatore pousou os dedos na borda da taça, sem a erguer. Lentamente, aproximou a sua mão de um cigarro. Ji percebeu que ele realizava muitos movimentos com as mãos. Como fosse uma espécie de guia.
— Ele também é doente? — pensou. — Não consigo pensar em nada que possa ser, tudo isso é tão estranho.
— continuou pensando.
Enquanto pensava, Salvatore levou o cigarro aos lábios, mas não o acendeu. Apenas o segurou ali, como se o gesto fosse mais importante do que o ato em si.
— Diz-me uma coisa, Kim. — falou, com a voz abafada mas firme. — Tu lês as pessoas como médico... ou como homem?
A pergunta apanhou-o desprevenido.
Ji hesitou por um segundo, mas respondeu com honestidade.
— Como médico primeiro. O resto… depende da pessoa.
Salvatore assentiu lentamente.
— Boa resposta. Porque aqui, vai ter de ser os dois. Se for só um… morrerá cedo.
— Compreendo.
O som ecoou pela sala como uma rajada de vento fora de tempo. Bianca entrou, descalça, com o cabelo meio solto e um leve brilho de desobediência nos olhos. Sem esperar convite, caminhou até à mesa e sentou-se ao lado de Ji como se já pertencesse ali.
Salvatore não se mexeu. Mas o ar ao redor dele endureceu.
— Bianca. — falou, sem levantar a voz. — Estou a ter uma conversa importante. E privada.
Ela cruzou os braços, recostando-se na cadeira como se estivesse no seu quarto.
— Por que privada? Não precisa ser tão sigiloso. — falou com desdém infantil. — E por que não posso saber? Ele que será o meu médico. Ou não sou parte da decisão?
Salvatore respirou devagar, mas os olhos por trás da máscara ficaram mais estreitos.
— Ainda não dei a última palavra.
Bianca inclinou-se para a frente, como se fosse uma menina a pedir um doce, mas havia um fogo calmo por trás do sorriso.
— Ah, pai. Só desta vez. — falou com um tom quase carinhoso. — Não seja assim. Não quero outra seleção. Quero ele. Ele é tão bonito.
Ji não soube se ficava lisonjeado ou desconfortável. Manteve-se neutro, mas sentiu a tensão a crescer.
Salvatore virou o rosto ligeiramente para ela. Pela primeira vez, não como o chefe de uma casa ou o senhor de um império, mas como pai.
— A beleza não salva vidas, Bianca.
— Mas a atenção salva. E eu estou a prestar atenção a ele. Isso já não é metade do caminho?
Silêncio. Salvatore voltou a fitar Ji. Longamente.
Depois, ergueu a taça de vinho sem beber.
— Muito bem. — falou enfim.
Bianca sorriu, vitoriosa. Ji sentiu o peso do momento. Ele não tinha sido aprovado. Tinha sido escolhido. E isso, naquela casa, podia ser uma bênção ou uma sentença lenta.
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Atualizado até capítulo 31
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