Subindo o Morro.

Subindo o Morro

Narrado por Duda

A primeira coisa que me pegou foi o cheiro. Um misto de couro velho com gasolina, que grudava no nariz e dizia: “cuidado, aqui não é o seu mundo”. Eu tava sentada no banco de trás, abraçada à minha mochila como se fosse uma âncora, dentro dela havia Caderno, escova de dente, poucas roupas, um moletom e um porta retrato com a foto da minha mãe.

Na frente, o cara dirigia em silêncio. Não disse o nome, não virou pra olhar, nem deu boa noite. Só o som do motor preenchendo o carro, firme, grave, como um aviso constante. Clara tava no banco do passageiro, olhando a rua, o celular, a rua de novo. Tensa. Como se quisesse dizer algo, mas achasse melhor não.

Eu sentia meu estômago revirar. Não só de medo, exatamente. Mas de não saber. E a pior parte era isso: eu sempre soube. Sempre tive controle. Dos horários, das notas, dos planos. Agora, eu era só alguém fugindo, dentro de um carro estranho, indo sabe-se lá pra onde.

— Clara… onde a gente tá indo? — arrisquei, tentando não parecer desesperada.

Ela virou devagar, me encarando. O olhar dela tinha um peso que eu nunca tinha percebido antes. Como se agora, fora da faculdade, ela se transformasse em outra pessoa, mais firme e mais segura.

— Confia em mim, Duda. Cê tá indo pro lugar certo.

Eu queria acreditar. Juro que queria. Mas conforme o carro subia aquela rua estreita, esburacada, e os postes iam ficando mais raros, era difícil ignorar o medo.

Casas coladas, parede descascada, som de pancadão vindo de algum lugar, molecada jogando bola descalça no asfalto quente. Um cachorro passou correndo na frente do carro. O motorista nem piscou.

Foi então que eu percebi. Tinha uma coreografia acontecendo ali. Uns caras parados nas esquinas faziam sinal com a cabeça, discretos, quando o carro passava. Um deles deu dois tapinhas na cintura e olhou direto pro motorista. O cara do volante respondeu só com o queixo. Como se fosse senha. Como se todo mundo se conhecesse.

— Clara… — minha voz saiu mais fraca dessa vez. — Aquele cara ali… quem é ele?

Ela não respondeu logo. Respirou fundo.

— Meu irmão.

Silêncio.

— Toro.

O nome caiu como uma bomba. Eu sabia que ja tinha visto aquele rosto em algum lugar e ao escutar o nome lembrei da faculdade, os meninos sussurrando pelos cantos da sala. "O irmão da Clara é daquele morro, dizem que ele comanda os esquemas la." Mas eu nunca imaginei que fosse real. Nunca imaginei que ela viesse daqui.

O carro parou em frente a uma casa. Simples, mas ajeitada. Portão de ferro pesado, câmera num canto, um moleque de boné já esperando pra abrir. Ele sorriu pra Clara, deu um “salve” com a cabeça e voltou correndo pra dentro.

Clara desceu. Me chamou com a mão.

— Vem, Duda. Aqui é minha casa e sua casa agora.

Casa?

Eu demorei dois segundos pra mexer o corpo. Desci com a mochila ainda colada em mim, os olhos girando ao redor como quem tá pisando em outro planeta. E era mesmo. Longe de tudo que eu conhecia.

A sala era aconchegante, apesar de simples. Chão limpo, sofá surrado mas com manta dobrada, um ventilador de mesa rodando no canto. Na cozinha, dava pra ouvir panela batendo, cheiro de alho refogado, alguma coisa fervendo. Tudo tão cheio de vida.

— Ô Clarinha! — uma mulher surgiu com vassoura na mão, sorriso no rosto e lenço na cabeça. — A cria chegou, foi?

— Chegou sim, tia Néia. Essa é a Duda.

A tal da tia Néia me olhou como quem lê uma história num segundo. Não julgou. Só assentiu e apontou pra cozinha.

— Vai comer, fia. Tá magra igual vareta. Aqui ninguém passa fome, não.

Sentei no sofá, meio sem saber se podia. Clara sentou do meu lado, cruzou as pernas e ficou me olhando.

— Cê tá bem?

— Não sei. Acho que sim.

Toro entrou logo depois, tirou o boné, deixou as chaves numa bandeja e me olhou rápido.

— Cê chegou bem?

— Sim… obrigada. Por tudo.

Ele só deu um “tá” e sumiu pra cozinha. O pouco que ele falava dizia muito.

Clara encostou no sofá, relaxando um pouco.

— Duda… eu sei que é diferente. Que é outro mundo, mas esse mundo aqui me salvou. E agora vai salvar você também.

— Você nunca me contou nada disso, Clara. Que morava aqui. Que seu irmão era… o Toro.

Ela deu um sorriso torto.

— Porque na tua bolha, ninguém quer saber do que é daqui. Se eu dissesse, talvez todos me olhassem diferente. Ou nem olhasse. Mas agora… agora você tá vendo de verdade. E também porque foi um trato que fiz com meu irmão, que estudaria no asfalto mas não iria dizer nada da minha origem para não colocar ninguém em risco

Suspirei e olhei em volta, a TV pequena num canto, a estante com fotos, um porta-retrato dela criança com o Toro adolescente, sorrindo. Ele sorria. Parecia outro naquela foto. Um moleque feliz, de chinelo, camisa larga.

— Eu tô com medo — confessei. — Mas, ao mesmo tempo eu tou me sentindo tão bem aqui. É estranho.

Clara apertou minha mão.

— Aqui, a gente protege os nossos. Mas cê vai ter que entender as regras. Aqui não é asfalto, Duda. Aqui tem código. E o principal é o código do silêncio.

Assenti. Eu não sabia exatamente no que tava me metendo. Mas uma coisa era certa: pela primeira vez na vida, eu tava pronta pra descobrir, estourar a bolha e viver por meus proprios pés.

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Comments

Kailine Kaay

Kailine Kaay

É o primeiro livro em que leio que o dono do morro mora em uma casa simples

2025-07-07

6

Vitoria Barbosa

Vitoria Barbosa

eita que tô amando

2025-06-28

0

Ver todos
Capítulos
1 Apresentação
2 O Pedido de Ajuda
3 Subindo o Morro.
4 Primeiros passos na Quebrada
5 O Começo de um Novo Mundo.
6 Entre Planilhas e Pensamentos
7 A Trinca do Comando
8 Entre Números e Pensamentos
9 Ouvintes Escondidos
10 O Barulho da Conversa
11 Baile do Rei
12 Entre Dois Mundos
13 Firmeza só na Quebrada
14 Noiado
15 A surpresa do Baile
16 Linha Tênue
17 De Olho no Jogo.
18 Olhares Cruzados
19 Vida que Segue
20 O Jogo Não Para
21 Contabilidade da Quebrada
22 Pressão e Decisão
23 O Esclarecimento
24 Os Números Nunca Mentem
25 Mais Perto
26 O Olhar do Chefe
27 Primeira Brecha
28 Tempestade no Ponto de Paz
29 Entre Beijos e Cicatrizes
30 O Cão Late Baixo
31 O Cão Fareja Perigo
32 Entre Palavras e Ações Erradas
33 O Peso da Ressaca
34 Nova Proposta
35 O Peso das Escolhas
36 Eu Disse Sim!!
37 A Dama da Contabilidade
38 Vida Nova
39 A Negação
40 O Recomeço de Duda
41 O Vazio
42 Bateu uma Saudade
43 O Email surpesa
44 Trêz Anos de Silêncio
45 Novos Caminhos
46 A Surpresa
47 Perdi Minha Filha
48 Pontes e Cicatrizes
49 Reconstruindo Laços
50 Heranças Invisíveis
51 Enquanto Isso no Morro
52 Fogo na Laje
53 Juliana Freitas Montesquiel
54 Perguntas que o tempo Não Apagou
55 O Deficit Invisivel
56 O Sinal da Quebrada
57 O Prazo Fatal
58 A Escolha de Voltar
59 Três Dias
60 De Volta a São Paulo
61 O Desespero de El Toro
62 A Chegada
63 A Chegada que Salvou
64 O Rombo
65 No Fio da Navalha
66 A Lenda Volta
67 A Sentença de Boca
68 Frente a Frente
69 Entre a Vida e o Que Importa
70 Só Nós Dois
71 A Noite Que Nunca Acabou
72 O Encontro que Mudou Tudo
73 Sangue do Meu Sangue
74 Esse é o Meu Filho
75 O Dia é Nosso
76 Hora De Voltar
77 A Ultima Chance
78 Surpresa a Caminho do Aeroporto
79 Era um Sinal
80 Soltando Fogo pela Venta
81 Caminho de Volta
82 De Volta Pra Vida
83 O Recomeço da Felicidade
Capítulos

Atualizado até capítulo 83

1
Apresentação
2
O Pedido de Ajuda
3
Subindo o Morro.
4
Primeiros passos na Quebrada
5
O Começo de um Novo Mundo.
6
Entre Planilhas e Pensamentos
7
A Trinca do Comando
8
Entre Números e Pensamentos
9
Ouvintes Escondidos
10
O Barulho da Conversa
11
Baile do Rei
12
Entre Dois Mundos
13
Firmeza só na Quebrada
14
Noiado
15
A surpresa do Baile
16
Linha Tênue
17
De Olho no Jogo.
18
Olhares Cruzados
19
Vida que Segue
20
O Jogo Não Para
21
Contabilidade da Quebrada
22
Pressão e Decisão
23
O Esclarecimento
24
Os Números Nunca Mentem
25
Mais Perto
26
O Olhar do Chefe
27
Primeira Brecha
28
Tempestade no Ponto de Paz
29
Entre Beijos e Cicatrizes
30
O Cão Late Baixo
31
O Cão Fareja Perigo
32
Entre Palavras e Ações Erradas
33
O Peso da Ressaca
34
Nova Proposta
35
O Peso das Escolhas
36
Eu Disse Sim!!
37
A Dama da Contabilidade
38
Vida Nova
39
A Negação
40
O Recomeço de Duda
41
O Vazio
42
Bateu uma Saudade
43
O Email surpesa
44
Trêz Anos de Silêncio
45
Novos Caminhos
46
A Surpresa
47
Perdi Minha Filha
48
Pontes e Cicatrizes
49
Reconstruindo Laços
50
Heranças Invisíveis
51
Enquanto Isso no Morro
52
Fogo na Laje
53
Juliana Freitas Montesquiel
54
Perguntas que o tempo Não Apagou
55
O Deficit Invisivel
56
O Sinal da Quebrada
57
O Prazo Fatal
58
A Escolha de Voltar
59
Três Dias
60
De Volta a São Paulo
61
O Desespero de El Toro
62
A Chegada
63
A Chegada que Salvou
64
O Rombo
65
No Fio da Navalha
66
A Lenda Volta
67
A Sentença de Boca
68
Frente a Frente
69
Entre a Vida e o Que Importa
70
Só Nós Dois
71
A Noite Que Nunca Acabou
72
O Encontro que Mudou Tudo
73
Sangue do Meu Sangue
74
Esse é o Meu Filho
75
O Dia é Nosso
76
Hora De Voltar
77
A Ultima Chance
78
Surpresa a Caminho do Aeroporto
79
Era um Sinal
80
Soltando Fogo pela Venta
81
Caminho de Volta
82
De Volta Pra Vida
83
O Recomeço da Felicidade

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