A Contadora Fiel do Morro de Santa Marta

A Contadora Fiel do Morro de Santa Marta

Apresentação

A apresentação

(Narrado por Duda)

Meu nome é Maria Eduarda Santorinni. Mas ninguém me chama assim. Na real, quase ninguém nem sabe. Sou só a Duda, simples assim. Dezenove anos nas costas, estudante de contabilidade numa das faculdades mais conceituadas de São Paulo. Dizem que tenho um “raciocínio matemático fora do comum”, que penso em números como se fosse uma bailarina dançando sobre fórmulas. Uma dessas “mentes raras” que professores adoram usar como exemplo.

Mas ninguém fala do que acontece quando essa mente rara mora numa jaula revestida de mármore e porcelanato italiano.

A mansão onde moro fica no alto do Morumbi. Um absurdo de grande. Piscina de borda infinita, jardim com paisagismo que parece ter saído de Versailles, e funcionários com uniforme e sorriso engessado. Por fora, tudo brilha. Por dentro, falta ar.

Depois que minha mãe morreu, o que aconteceu quando eu tinha doze, meu pai se jogou no trabalho como quem tenta nadar pra longe da dor. Ele não superou. Só trocou luto por reuniões e ausência. Me responde por mensagens, como se eu fosse uma assistente da empresa dele. “Bom dia, Duda. Preciso que esteja presente no jantar de hoje. Não se atrase.” Essa foi a última mensagem que ele me mandou.

Foi nesse vácuo que Renata apareceu. Madrasta é uma palavra que já carrega peso, mas ela conseguiu dar um significado ainda mais incômodo. Alta, loira, com cara de capa de revista cara, olhos frios e uma paciência ensaiada. A mulher me olha como se eu fosse uma planta fora do paisagismo, que é viva mas inconveniente.

Aos poucos, a casa deixou de ter o meu cheiro. Minhas coisas sumiam e reapareciam como se tivessem passado por uma triagem silenciosa. Meus livros foram “organizados”,  para não dizer que foram escondidos. A comida que eu gostava parou de ser comprada. Um dia, procurei minha blusa preferida e encontrei dobrada de um jeito esquisito em cima da cama dela. Tudo que a Renata fazia tinha um toque de aviso: “Você não manda mais aqui.”

Hoje cedo, Renata entrou na cozinha como quem pisa num comercial de margarina: impecável, sorrindo para ninguém. Cumprimentou a governanta, abriu o jornal e disse, sem desviar os olhos da manchete:

— Duda, não esquece que hoje tem jantar com os investidores do seu pai. Vista algo decente, tá?

Decente.

Soltei um suspiro preso. Fiquei em silêncio. Ela nem esperou resposta. Nunca espera. Saí da cozinha sem dizer uma palavra.

Na faculdade, eu respiro. Lá, ninguém me vê como “filha do Santorinni”. Lá eu sou a Duda que faz os trabalhos mais difíceis parecerem simples. A que resolve DRE como quem joga Sudoku. A que dá risada alta no intervalo e ajuda quem tá se ferrando na prova de contabilidade de custos.

Foi ali que conheci Clara. Uma presença que chegou de mansinho, mas logo virou refúgio. Morena, cabelo liso escorrido, preto como noite sem lua, olhos puxados, olhar atento. Sempre impecável, com um estilo que gritava atitude e um jeito de falar com todos, do professor ao porteiro, sem deixar de ser ela mesma. Clara não se abria muito, e eu nunca forcei. Algumas amizades nascem assim: sem precisar ser dito tudo, mas com uma afinidade impar.

Ela foi a primeira pessoa que ouviu meus desabafos sobre Renata, sobre como era viver numa casa onde tudo era luxo, menos o afeto. Sobre como doía ouvir meu pai falando mais com o motorista do que comigo. Clara ouvia e não julgava. Só ouvia. E isso bastava.

Mas nem ela sabia que hoje seria meu limite.

Voltei da aula, cansada, com a cabeça cheia de fórmulas. Entrei em casa e, antes mesmo de largar a bolsa, ouvi a voz da Renata ao telefone:

— Essa menina precisa de um estágio longe. Bem longe. Se for em outro país, melhor ainda.

A frase ficou no ar como uma nuvem venenosa.

Ela sabia que eu estava ouvindo, porque ela queria que eu ouvisse.

Subi pro quarto com o coração disparado. Lá dentro, fechei a porta com força, encostei e deslizei até o chão. Por alguns minutos, só escutei minha respiração. Não chorei. Não gritei. Só pensei. Fui até o armário e comecei a arrumar minhas coisas. Sem barulho, sem drama. Racional, como um balancete. Separei documentos, cadernos, o notebook, dois cartões de débito com limites baixos e meu fone de ouvido. Roupas? Só as básicas. O suficiente pra não chamar atenção.

Na varanda, parei. Olhei São Paulo de cima, aquela cidade que parece não dormir nunca. Tantas luzes. Tantos prédios. Tanta gente vivendo suas tragédias pessoais em silêncio.

“Será que vou sentir falta disso tudo?”, pensei.

A resposta veio como um estalo: não.

Peguei o celular e digitei uma mensagem. Só uma linha.

“Quero sumir daquu. Posso contar com você?”

Enviei pra única pessoa que não ia perguntar por quê: Clara.

E foi assim que começou a minha vida longe do Morumbi. Sem carta de despedida.

Duda seria parecida com ela.

Clara seria parecida com ela.

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Comments

Edna César

Edna César

ela é uma idiota.
eu não entendo como as pessoas deixam os outros mandarem nas suas casas.
eu me torno no teu pior pesadelo

2025-07-01

4

jeovana❤

jeovana❤

𝙩𝙤𝙢𝙖𝙧𝙖 𝙦𝙪𝙚 𝙤 𝙞𝙙𝙞𝙤𝙩𝙖 𝙙𝙤 𝙥𝙖𝙞 𝙙𝙚𝙡𝙖 𝙥𝙚𝙧𝙙𝙖 𝙩𝙪𝙙𝙤 𝙥𝙧𝙖 𝙖𝙥𝙧𝙚𝙣𝙙𝙚𝙧

2025-06-20

3

Vaniaferreirasilva ferreira

Vaniaferreirasilva ferreira

1° vez lendo sua história!

2025-07-04

0

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Capítulos
1 Apresentação
2 O Pedido de Ajuda
3 Subindo o Morro.
4 Primeiros passos na Quebrada
5 O Começo de um Novo Mundo.
6 Entre Planilhas e Pensamentos
7 A Trinca do Comando
8 Entre Números e Pensamentos
9 Ouvintes Escondidos
10 O Barulho da Conversa
11 Baile do Rei
12 Entre Dois Mundos
13 Firmeza só na Quebrada
14 Noiado
15 A surpresa do Baile
16 Linha Tênue
17 De Olho no Jogo.
18 Olhares Cruzados
19 Vida que Segue
20 O Jogo Não Para
21 Contabilidade da Quebrada
22 Pressão e Decisão
23 O Esclarecimento
24 Os Números Nunca Mentem
25 Mais Perto
26 O Olhar do Chefe
27 Primeira Brecha
28 Tempestade no Ponto de Paz
29 Entre Beijos e Cicatrizes
30 O Cão Late Baixo
31 O Cão Fareja Perigo
32 Entre Palavras e Ações Erradas
33 O Peso da Ressaca
34 Nova Proposta
35 O Peso das Escolhas
36 Eu Disse Sim!!
37 A Dama da Contabilidade
38 Vida Nova
39 A Negação
40 O Recomeço de Duda
41 O Vazio
42 Bateu uma Saudade
43 O Email surpesa
44 Trêz Anos de Silêncio
45 Novos Caminhos
46 A Surpresa
47 Perdi Minha Filha
48 Pontes e Cicatrizes
49 Reconstruindo Laços
50 Heranças Invisíveis
51 Enquanto Isso no Morro
52 Fogo na Laje
53 Juliana Freitas Montesquiel
54 Perguntas que o tempo Não Apagou
55 O Deficit Invisivel
56 O Sinal da Quebrada
57 O Prazo Fatal
58 A Escolha de Voltar
59 Três Dias
60 De Volta a São Paulo
61 O Desespero de El Toro
62 A Chegada
63 A Chegada que Salvou
64 O Rombo
65 No Fio da Navalha
66 A Lenda Volta
67 A Sentença de Boca
68 Frente a Frente
69 Entre a Vida e o Que Importa
70 Só Nós Dois
71 A Noite Que Nunca Acabou
72 O Encontro que Mudou Tudo
73 Sangue do Meu Sangue
74 Esse é o Meu Filho
75 O Dia é Nosso
76 Hora De Voltar
77 A Ultima Chance
78 Surpresa a Caminho do Aeroporto
79 Era um Sinal
80 Soltando Fogo pela Venta
81 Caminho de Volta
82 De Volta Pra Vida
83 O Recomeço da Felicidade
Capítulos

Atualizado até capítulo 83

1
Apresentação
2
O Pedido de Ajuda
3
Subindo o Morro.
4
Primeiros passos na Quebrada
5
O Começo de um Novo Mundo.
6
Entre Planilhas e Pensamentos
7
A Trinca do Comando
8
Entre Números e Pensamentos
9
Ouvintes Escondidos
10
O Barulho da Conversa
11
Baile do Rei
12
Entre Dois Mundos
13
Firmeza só na Quebrada
14
Noiado
15
A surpresa do Baile
16
Linha Tênue
17
De Olho no Jogo.
18
Olhares Cruzados
19
Vida que Segue
20
O Jogo Não Para
21
Contabilidade da Quebrada
22
Pressão e Decisão
23
O Esclarecimento
24
Os Números Nunca Mentem
25
Mais Perto
26
O Olhar do Chefe
27
Primeira Brecha
28
Tempestade no Ponto de Paz
29
Entre Beijos e Cicatrizes
30
O Cão Late Baixo
31
O Cão Fareja Perigo
32
Entre Palavras e Ações Erradas
33
O Peso da Ressaca
34
Nova Proposta
35
O Peso das Escolhas
36
Eu Disse Sim!!
37
A Dama da Contabilidade
38
Vida Nova
39
A Negação
40
O Recomeço de Duda
41
O Vazio
42
Bateu uma Saudade
43
O Email surpesa
44
Trêz Anos de Silêncio
45
Novos Caminhos
46
A Surpresa
47
Perdi Minha Filha
48
Pontes e Cicatrizes
49
Reconstruindo Laços
50
Heranças Invisíveis
51
Enquanto Isso no Morro
52
Fogo na Laje
53
Juliana Freitas Montesquiel
54
Perguntas que o tempo Não Apagou
55
O Deficit Invisivel
56
O Sinal da Quebrada
57
O Prazo Fatal
58
A Escolha de Voltar
59
Três Dias
60
De Volta a São Paulo
61
O Desespero de El Toro
62
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A Chegada que Salvou
64
O Rombo
65
No Fio da Navalha
66
A Lenda Volta
67
A Sentença de Boca
68
Frente a Frente
69
Entre a Vida e o Que Importa
70
Só Nós Dois
71
A Noite Que Nunca Acabou
72
O Encontro que Mudou Tudo
73
Sangue do Meu Sangue
74
Esse é o Meu Filho
75
O Dia é Nosso
76
Hora De Voltar
77
A Ultima Chance
78
Surpresa a Caminho do Aeroporto
79
Era um Sinal
80
Soltando Fogo pela Venta
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Caminho de Volta
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De Volta Pra Vida
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O Recomeço da Felicidade

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