Viagem

Fugi como um criminoso, como um rato se esgueirando pelos becos escuros de uma cidade que não queria mais me reconhecer. Mas, no fundo, quem não queria ser reconhecida era eu.

Ganhei uma nova identidade, um novo nome. Odessa Gray.

Era estranho me chamar assim, estranho olhar no espelho e ver o reflexo de alguém que não existia antes. Kiara Gray estava morta. E talvez fosse melhor assim.

O passado ficou para trás, enterrado junto com as cicatrizes que Ethan deixou em mim. Mas, mesmo com um novo nome, um novo lugar, o medo ainda rastejava pela minha mente. Eu era livre, mas nunca deixaria de estar fugindo.

[...]

O relógio marcava duas da manhã quando finalmente pude embarcar. O voo deveria ter saído há uma hora, mas os atrasos eram apenas mais um detalhe em meio ao caos que minha vida havia se tornado.

Caminhei pelo corredor estreito do avião, segurando firme minha bolsa contra o peito, como se aquele pequeno peso pudesse me ancorar na realidade. Meu coração batia rápido demais, uma mistura de ansiedade, medo e um fio de esperança quase imperceptível.

Quando encontrei meu assento, me afundei nele, exausta. O avião ainda não havia decolado, mas eu já sentia o peso da viagem em meu corpo. Respirei fundo, tentando manter a calma.

Eu precisava ser forte.

Fechei os olhos por um momento. Minha mente insistia em revisitar tudo o que eu estava deixando para trás. O medo. A dor. O passado que me assombrava. Mas eu não poderia permitir que esses pensamentos me dominassem.

Eu precisava ser mais forte do que nunca.

Como mulher. Como vítima de violência doméstica. Como uma pessoa negra.

Nascemos na luta, crescemos na resistência. Carregamos o peso do mundo nas costas, e mesmo quando tentam nos quebrar, nós continuamos em pé.

Nada pode me fazer desistir.

Abri os olhos e olhei pela janela. As luzes do aeroporto cintilavam na escuridão da madrugada, refletindo meu próprio estado: frágil, mas ainda brilhando.

O piloto anunciou que em breve decolaríamos. Meu corpo se enrijeceu quando as turbinas ganharam força e o avião começou a se mover. Minhas mãos apertaram os braços da poltrona instintivamente. O medo de voar não era o problema, o verdadeiro medo era do que viria depois.

O avião decolou, e eu senti a pressão em meus ouvidos enquanto subíamos ao céu. Lá embaixo, Oregon se tornava apenas um conjunto de luzes distantes, cada vez menores.

Era isso. Eu estava partindo.

A viagem até Chicago levaria cerca de quatro horas. Quatro horas sozinha com meus pensamentos.

A primeira hora passou lentamente. Meu corpo estava cansado, mas minha mente se recusava a desligar. Será que fiz a escolha certa? Será que um dia vou conseguir me sentir segura de verdade?

Na segunda hora, tentei dormir, mas o sono não vinha. Toda vez que fechava os olhos, flashes do passado voltavam. O olhar de Ethan quando ficava com raiva. O som da sua voz gritando comigo. O impacto dos socos. O sangue. O choro. O bebê que nunca conheci.

Minha respiração ficou irregular. Minhas mãos estavam suadas. Me forcei a abrir os olhos e encarar a realidade ao meu redor. Passageiros dormindo. O barulho suave do avião cortando o céu. Eu estava segura. Pelo menos por agora.

Na terceira hora, senti um aperto no peito. Eu estava realmente sozinha no mundo. Sem pais. Sem família. Sem amigos. Era assustador perceber que, se eu sumisse, ninguém sentiria minha falta.

E, ao mesmo tempo, era libertador.

Eu podia recomeçar. Criar uma nova versão de mim, uma que não fosse feita apenas de medo e cicatrizes.

A quarta hora chegou, e com ela, um cansaço absoluto. A cidade de Chicago apareceu no horizonte, suas luzes brilhando como uma promessa de um futuro incerto.

O avião pousou suavemente, mas dentro de mim, uma tempestade continuava.

Respirei fundo.

Era só uma fase.

E eu precisava seguir em frente.

Cheguei a Chicago por volta das seis da manhã. O ar gelado cortou minha pele assim que desci do ônibus, e a cidade parecia respirar ao meu redor, com suas luzes neon e ruas ainda movimentadas, mesmo naquela hora.

O inverno estava à espreita, e eu me encolhi no casaco fino que vestia. Todo mundo ao meu redor parecia preparado para o frio—cachecóis grossos, luvas, gorros cobrindo as cabeças. Eu não.

Mas eu tinha uma missão: seguir em frente.

Chamei um táxi e dei o endereço rabiscado no papel. O motorista não perguntou nada. Apenas dirigiu em silêncio enquanto eu olhava pela janela as ruas desconhecidas que, a partir de agora, seriam minha nova casa.

Quando o carro parou, desci carregando minha mala e encarei o prédio à minha frente. Não era grande, nem luxuoso. Mas era meu.

Passei os dedos trêmulos pelo bolso e peguei as chaves. O ferro gelado queimou minha pele, mas ignorei e destranquei a porta. O interior do pequeno apartamento estava escuro e vazio. As paredes eram simples, sem enfeites. Havia um colchão jogado no canto do quarto preciso comprar um novo...

Mas havia potencial.

Joguei minha mala no chão e soltei um suspiro longo, finalmente sentindo o peso da jornada que fiz até ali.

Eu poderia transformar aquele lugar em um lar.

Eu iria transformá-lo.

Porque, pela primeira vez em muito tempo, esse espaço era só meu.

Fechei a porta atrás de mim e soltei um suspiro. O apartamento parecia frio e vazio, mas ainda assim, havia algo nele que me fazia sentir um resquício de segurança.

Minha mala estava jogada no chão, mas eu não tinha forças para desarrumá-la agora. Meu corpo implorava por descanso, minha mente pulsava com a exaustão da viagem e dos pensamentos que me assombravam.

Mas antes de dormir, eu precisava de um banho.

Passei a mão pelo interruptor e a luz fraca piscou antes de finalmente iluminar o pequeno espaço. A cozinha e a sala eram praticamente um só ambiente, e havia uma porta que eu imaginava levar ao banheiro.

Caminhei até lá, sentindo o piso gelado sob meus pés. O espelho acima da pia refletiu meu rosto e, por um instante, eu hesitei em me encarar. Mas não consegui evitar.

A mulher que me olhava de volta parecia uma estranha. Olheiras profundas escureciam meus olhos cansados. Meu rosto ainda estava marcado com pequenos hematomas, sombras dos golpes de Ethan. Meu lábio inferior tinha um corte quase cicatrizado, e minha pele parecia mais pálida do que nunca.

Odessa Gray.

Era esse o nome da mulher no espelho.

Suspirei e abri a torneira do chuveiro, esperando a água esquentar. O banheiro era pequeno e simples, com azulejos brancos um pouco desgastados. Mas eu não me importava.

Tirei minhas roupas devagar, sentindo o peso da viagem e das lembranças em cada movimento. Entrei debaixo da água e fechei os olhos.

O calor deslizou pela minha pele, e, por um momento, senti como se pudesse lavar não só a sujeira da viagem, mas tudo o que ainda pesava dentro de mim.

O medo. A dor. A culpa.

Encostei a testa contra a parede fria e respirei fundo.

Está tudo bem. Você está segura.

Mesmo que eu ainda não acreditasse totalmente nisso, repeti essas palavras na minha mente como um mantra.

Fiquei ali por vários minutos, deixando a água quente acalmar meus músculos tensos. Mas o cansaço logo falou mais alto.

Fechei o chuveiro e saí, me enrolando em uma toalha. Meus cabelos pingavam água no chão, mas eu não me importei, mas coloquei a toalha e dei uma checada no celular novo que comprei.

Vesti uma camiseta larga e uma calça de moletom, roupas confortáveis que ainda tinham o cheiro do meu antigo apartamento. Algo familiar em meio ao desconhecido.

Caminhei até o colchão no chão e me deitei, puxando o cobertor fino sobre meu corpo. O colchão era velho, um pouco duro, mas, naquele momento, parecia o lugar mais confortável do mundo.

Meu corpo afundou no tecido, e eu senti minhas pálpebras pesarem.

Fechei os olhos.

O relógio marcava quase sete da manhã. O mundo lá fora começava a ganhar vida, mas, para mim, o tempo parecia suspenso.

Apenas algumas horas de descanso, pensei.

E então, finalmente, me permiti dormir.

[...]

Acordei com o som insistente do celular vibrando ao meu lado. Pisquei algumas vezes, ainda meio perdida entre o sono e a realidade, até perceber que era uma mensagem.

"Kiara, como está longe, passarei o seu caso para minha irmã. Ela é uma ótima profissional. Por favor, vá a todas as consultas. O consultório dela fica próximo ao seu novo apartamento. A partir de hoje, deixei de ser sua médica e passei a ser sua amiga."

Fiquei encarando a tela por alguns segundos antes de soltar um pequeno sorriso. Minha psicóloga—agora amiga—era a única pessoa que tinha meu novo número.

Me espreguicei no colchão, ouvindo minhas costas estalarem. Eu precisava levantar. Precisava comprar algumas coisas para o apartamento e, mais importante, algo decente para comer. Meu estômago já estava começando a se manifestar.

Levantei ainda vestindo as mesmas roupas que dormi, porque, sinceramente, quem se importa? Peguei minha bolsa e fui para a rua sem pensar muito.

Assim que abri a porta do prédio, me deparei com um enorme doberman bem na minha frente. Um monstro de quatro patas. Um verdadeiro cão do inferno.

Ele rosnou.

Eu congelei.

Foi como se, de repente, minha alma tivesse saído do corpo para me observar lá de cima. "É assim que eu morro?", pensei.

— Vance, quieto. — A voz masculina soou atrás do cachorro.

O tal Vance latiu. Alto. Com força. Com o puro desejo de arrancar minha alma pela boca.

— DEUS! — soltei, já me preparando para aceitar meu destino.

— Oh, Vance, caralho, quieto! — O homem resmungou, desta vez com mais firmeza.

Finalmente, tive coragem de olhar para cima e encarei o dono da fera. Ele estava distraído digitando um código na porta do prédio, sem nem se preocupar que o cachorro estava prestes a me devorar.

— Desculpe, ele sempre age assim com desconhecidos. — Ele lançou um olhar para o cão. — Pode passar, ele não tá num surto de te morder, não.

Hesitei. Como assim "não tá num surto"? Então existe a possibilidade de surto?!

O homem notou minha expressão e suspirou.

— Vance, você assustou a moça.

Ele então olhou diretamente para mim pela primeira vez. Era alto, tinha ombros largos e um cabelo bagunçado de quem claramente não se preocupava muito com a aparência. Seu olhar era intenso, mas havia um certo cansaço ali.

— Oliver.

— Odessa Gray... — murmurei, aproveitando que Vance agora estava mais interessado em receber carinho do que me transformar no café da manhã.

Sem dar chance para a conversa continuar (ou para o cachorro mudar de ideia sobre o surto), virei nos calcanhares e fui direto para a saída do prédio.

— Até! — me despedi por cima do ombro, praticamente marchando para longe dali.

Só depois de virar a esquina percebi que meu coração ainda estava disparado.

Bem-vinda ao bairro, Odessa. Aqui, os vizinhos são simpáticos e os cachorros te colocam à beira de um infarto antes das 11h da manhã.

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