Presa?

Às vezes o mundo muda num segundo.

E às vezes, ele muda bem devagar, como café frio sendo esquecido na xícara.

A tarde começou assim. Estranha.

O movimento do Bluebird estava diferente. Rostos novos, gente que não combinava com a música ambiente nem com o cheiro de canela que eu jogava no balcão. Três homens sentaram nos fundos e ficaram ali por horas, olhando mais pro salão do que pro cardápio.

Eu tentava ignorar, sorrir como sempre, mas... tinha algo no ar. Uma sensação úmida na nuca. Como se eu estivesse sendo vigiada.

Quando anoiteceu, a cidade ficou mais silenciosa que o normal. Nem o sino da porta soava mais com leveza. Era um tipo de presságio — mas a gente só entende isso depois.

Eu já estava limpando a máquina de café quando ouvi o barulho seco da porta de vidro abrindo. Virei e vi dois homens entrarem.

Um deles era grande, olhos claros, ombros largos, a expressão dura como pedra esculpida.

O outro era mais novo, mas com o mesmo olhar atento.

O mais velho — o que parecia liderar — me encarou com intensidade. Não era só autoridade, era outra coisa. Um calor cortante, como se quisesse me decifrar antes mesmo de eu dizer meu nome.

Senti um arrepio. E soube: aquele era o delegado. Marcus Hale.

Eles não pediram café. Nem boa noite.

— Você é Evelyn Carter? — perguntou ele, com a voz firme e baixa.

Engoli em seco.

— Sou. Por quê?

— Gostaríamos de conversar com você sobre uma mulher chamada Amélia Dorne.

Ele não disse “morta".

Ele não disse nada. Só deixou o nome cair no ar como um fio desencapado.

Eu podia mentir. Podia fingir que não lembrava. Mas meu rosto já dizia tudo.

— Conheci. Ela costumava vir aqui. Mas faz... dias. Uns três, talvez. Não a vi mais.

Ele não respondeu. Só trocou um olhar com o outro policial.

E foi ali, naquele silêncio que durou dois segundos a mais do que devia, que entendi:

Algo terrível tinha acontecido. E eu estava no centro disso.

— Precisa vir conosco, senhorita Carter. É só pra esclarecer algumas coisas.

— Eu não entendo... Eu só — Eu só tentei ajudar — respondi tensa.

— Ajuda a gente também. Vem.

A voz dele não era cruel. Mas também não havia espaço para recusar.

Me vi do lado de fora, sendo colocada no banco traseiro de uma viatura. A rua parecia menor, as luzes mais frias, e o céu...

O céu estava tão cinza que parecia pesar sobre mim.

E pela primeira vez desde que cheguei a Redfield, tive medo de verdade não ser suficiente.

A sala era pequena. Fria. Cheirava a ferro-velho e café barato.

Eu não sabia se tremia de medo, de frio ou só por ter passado a última hora tentando entender se aquilo era mesmo real.

Um espelho falso me encarava do outro lado da parede. Eu sabia que tinha alguém ali atrás. Observando. Julgando.

Meus dedos tamborilavam na borda da cadeira. Tentava me manter firme, mas por dentro era só caos. Coração aos saltos, garganta seca.

A porta abriu. Dois homens.

Os dois reconheci na hora — o tal que entrara comigo na viatura. Grosseiro. Sorriso enviesado, olhar cheio de desprezo. Cole Jennings.

O outro... Marcus Hale. O delegado. O que me olhava como se visse através da minha pele.

Ele não dizia muito. Mas era o silêncio dele que mais pesava.

Cole foi o primeiro a falar, como uma avalanche que não espera aviso.

— Vamos direto ao ponto. Amelia Dorne. Você a conhecia. Escondeu isso. Mentiu para polícia. Quer começar explicando isso, “Evelyn do Bluebird”?

Respirei fundo. Engolir o orgulho nunca doía tanto quanto engolir o medo.

— Eu... Eu a conheci, sim. Mas eu só tentei ajudar. Ela disse que estava sendo perseguida. Que assinou um contrato com uma agência chamada Marlowe, e que o dono, Victor Marlowe, era perigoso. Que ela não sabia tudo no começo, que foi enganada...

— Enganada? Por favor. Ela era adulta, e você é burra ou cúmplice. — Cole cuspiu as palavras, sem nem piscar. — O que vocês estavam escondendo? Drogas? Grana? Um corpo antes desse?

Eu fechei os olhos. A raiva começou a pulsar junto com o medo.

— Ela disse que não queria ser prostituta. Que estavam forçando. Que a seguiam. Ela estava com medo. Eu não sabia o que fazer. Eu... deixei que ficasse na minha casa. Por duas noites. Só isso. Eu juro.

— Claro. A santa do café. Quer que eu acredite que arriscou sua vida por uma desconhecida?

— Ele riu, sarcástico. — Ninguém vai acreditar em uma vadia de bar como você.

A palavra me cortou. Como uma faca cega.

Meu corpo gelou, e meus olhos encheram. Mas foi quando Marcus falou, firme e alto, que o ar na sala mudou.

— Sai, Cole. Agora.

— Mas delegado—

— Disse. Sai.

Cole bufou, mas saiu batendo a porta com força, deixando o ar mais pesado do que quando entrou.

Fiquei ali, olhos baixos, lágrimas agora sem controle.

Foi quando Marcus se sentou de frente para mim, os cotovelos apoiados na mesa, e disse com uma calma que mais assustava que acalmava:

— Ela foi encontrada morta. No rio. Hoje.

Eu quebrei por dentro.

Não chorei bonito. Chorei com o peito. Com a alma.

Ela estava tentando fugir. Ela queria viver. E agora...

— Victor Marlowe precisa ser investigado. Ela me contou coisas. Que tinha medo dele. Que ninguém sabia quem ele realmente era. Eu não sei se era verdade... mas ela acreditava. Ela... tinha tanto medo.

Ele me observava, sem anotar nada. Só observava.

Não com piedade. Mas com dúvida.

Como quem começa a montar um quebra-cabeça onde antes só via peças soltas.

— Eu sei que menti antes. Mas agora... agora eu tô dizendo tudo. E sei que talvez ninguém vá acreditar. Mas eu preferia dizer a verdade tarde... do que nunca.

Marcus se levantou devagar, caminhou até a porta, mas antes de sair, se virou.

— Você vai ficar aqui por enquanto. Até descobrirmos quem está mentindo. Você... ou o resto dessa cidade.

E então a porta se fechou.

E eu fiquei só.

Com o luto. Com o medo.

E com a certeza de que a verdade, às vezes, vem vestida de crime.

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Comments

Maria Joana

Maria Joana

vai ver que foi esse tal cole que matou a menina 🤔

2025-05-03

0

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