Nas Mãos do Delegado
Me chamo Evelyn Carter. Tenho 27 anos, moro sozinha num apartamento pequeno, na rua de um café que cheira a baunilha e lembrança. Vim do interior, de uma cidade com uma rua principal, dois mercados e um silêncio que só era quebrado por sinos de igreja ou grito de galo.
Meus pais continuam lá, cuidando da terra e agradecendo a Deus por cada colheita que não deu errado. Eles não entendem muito bem por que vim para Redfield. Dizem que a cidade é perigosa, cheia de gente que não olha nos olhos. Mas eu vim mesmo assim.
Meu sonho? Ser professora. Ensinar crianças. Ter uma turma com carteiras miúdas, desenhos tortos na parede e uma jarra de suco no canto da sala. Eu queria isso mais que qualquer coisa. Mas a vida tem um jeito estranho de atrasar a gente quando o dinheiro não acompanha o passo.
Trabalho no Café Bluebird desde que cheguei. Não é muito, mas paga o aluguel e deixa um troco para mandar para casa de vez em quando. As pessoas me conhecem por aqui. Gosto disso. Me faz sentir menos sozinha.
E então... em um dia chuvoso apareceu Amélia.
Alta, magra, bonita de um jeito que a gente vê em capa de revista. Mas era nos olhos que morava o desespero. Os olhos dela carregavam um medo mudo, como se estivessem sempre pedindo socorro.
No começo era só mais uma cliente. Depois, um rosto familiar. E então... uma confissão, um pedido de ajuda sussurrado entre goles de café.
Ela apareceu na porta do Bluebird com os ombros curvados, os olhos escondidos por um par de óculos escuros que não combinavam nem um pouco com o dia nublado. Eu já sabia que ela viria — a forma como ela segurou meu braço na última vez que a atendi, perguntando se eu trabalhava todos os dias, dizia mais do que qualquer frase inteira.
— Posso te servir o de sempre? — perguntei, tentando parecer natural, mas com o coração acelerado.
— Pode... só o café hoje. Preto. Sem açúcar. — A voz dela saiu seca, como se cada palavra pesasse.
Esperei o balcão esvaziar, como sempre fazia quando queria conversar com algum cliente mais em paz. Levei a caneca até a mesa dela, sem bandeja, só nós duas ali.
— Tá tudo bem? — perguntei, baixinho.
Ela hesitou. Tocou a xícara com os dedos trêmulos, como se tentasse absorver o calor.
— Não. — Resposta direta. Um sussurro.
— Quer conversar? — questionei.
Amélia respirou fundo, o lábio inferior preso entre os dentes. Depois olhou ao redor, desconfiada, e falou rápido, quase sem mexer os lábios.
— Eles acham que eu vou voltar. Mas eu não vou. Eu não vou ser... isso. Uma delas.
— Uma delas...? — perguntei sem entender a confusão que vinha de suas palavras,
— Prostituta. Eles chamam de “acompanhante”. Mas é isso. Eu achei que era uma agência de moda. Tudo era bonito, limpo, profissional... até não ser mais.
— Você tá sozinha aqui? Não tem ninguém pra te ajudar?
— Eu tenho você. — A voz dela falhou. Os olhos se encheram de lágrimas. — Eu não tenho ninguém. E não posso ir para casa. Se eu aparecer lá, eles vão atrás dos meus pais. Eu ouvi. Eu ouvi eles falando.
O silêncio entre nós foi mais forte que o som das louças, da máquina de café, das conversas ao fundo. Eu me sentei na cadeira à frente dela, com cuidado, como se qualquer movimento brusco pudesse quebrar algo dentro dela.
— Ta com o carro aqui? — perguntei.
Ela assentiu.
— Estacionei duas ruas abaixo. Mas eu nem durmo. Fico vigiando. Achei que alguém me seguiu ontem.
Pensei rápido. Não podia levá-la para minha casa ainda — o movimento do café, minha gerente curiosa, a cidade pequena... mas à noite?
— Às nove eu saio. Me encontra aqui na esquina, do outro lado da rua. Eu te levo para minha casa. Fica fora do centro, ninguém vai te achar. Você pode dormir lá... ou se quiser ficar no carro até ter certeza, tudo bem também. Eu não vou te deixar sozinha.
Ela tremeu levemente, talvez de medo, talvez de alívio.
— Você tem certeza?
— Amélia, você só vai me pedir ajuda uma vez? Porque se for, então sim. Eu tenho certeza.
Ela respirou fundo, o corpo ainda tenso. E então assentiu, baixinho, como quem aceita uma bóia jogada no meio de um mar revolto.
Olhei o relógio no pulso: 8h42. Ainda faltavam alguns clientes regulares do fechamento, mas eu já começava a guardar as xícaras limpas. Amélia ainda estava na mesma mesa, de cabeça baixa, mexendo o café frio só por fazer.
Me aproximei discretamente, limpando a mesa com um pano só para parecer natural.
— Vai esperar no carro? — perguntei em voz baixa.
Ela assentiu, sem me encarar. Os ombros dela estavam encolhidos, como se estivesse tentando se esconder de algo que podia surgir a qualquer momento.
Tirei do bolso a chave reserva do meu carro. Um Fiat velho, verde musgo, que mais parecia um carrinho de brinquedo esquecido no tempo, mas era meu abrigo ambulante. Estacionei atrás do café, num beco apertado onde os funcionários deixavam seus veículos, ela não levaria o dela, não agora. Quase ninguém passava por ali à noite, então sair com o meu é seguro.
Estendi a chave por debaixo do pano que ainda fingia limpar a mesa.
— Tá destrancado. Pode deitar o banco da frente e se encolher ali até eu terminar aqui. Ninguém vai te ver.
Ela hesitou, pegou a chave com as pontas dos dedos, e me olhou pela primeira vez naquela noite.
— Você não me conhece. Por que tá fazendo isso?
Engoli seco. Nem eu sabia direito.
— Porque eu sei como é não ter para onde correr. E porque... você parece alguém que só quer respirar em paz.
O olhar dela vacilou, e por um segundo, acho que ela acreditou que podia confiar em mim.
Sem dizer mais nada, ela se levantou, ajeitou a bolsa no ombro e saiu com passos rápidos, tentando não chamar atenção.
Acompanhei com o olhar pela vitrine embaçada. Ela virou a esquina do prédio, seguiu pelo corredor estreito entre o Bluebird e a loja de ferragens, sumindo logo em seguida.
O coração batia mais rápido no meu peito.
Eu tinha acabado de esconder uma garota que dizia estar fugindo de gente perigosa.
E no fundo, eu sabia...
A partir dali, minha vida ia deixar de ser simples para sempre.
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Atualizado até capítulo 38
Comments
Maria Joana Cunha Costa
hum complicado
2025-05-03
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