Cicatrizes Invisíveis

O silêncio da madrugada no galpão era tão denso que até o som da colher batendo na tigela ecoava como uma provocação. Jiwoo havia saído fazia alguns minutos, deixando no ar aquele rastro barato de perfume misturado com suor e sexo. Ryu estava nu da cintura para cima, ainda suado, ainda com os músculos tensionados, mas os olhos… agora baixos, cansados, fixos na tigela de arroz instantâneo com ovo estourado no topo. Era sua ceia: uma refeição de sobrevivente, barata, quente e triste.

Ele se sentou no colchão, com a luz fraca da lâmpada tremendo como se também estivesse exausta de existir. O vapor da comida subia, mas ele não tinha fome. Com o celular na mão, deslizou pela tela rachada até abrir o aplicativo do banco.

Saldo: ₩950.000 — o prêmio da noite.

Quase sorriu.

Quase.

As notificações vieram como estocadas no estômago:

Pagamento automático efetuado: ₩210.000 – Empréstimo 01

Pagamento automático efetuado: ₩320.000 – Cartão de Crédito

Pagamento automático efetuado: ₩280.000 – Juros Atrasados

Pagamento automático efetuado: ₩100.000 – Dívida pessoal – Kang Hyesun

Saldo final: ₩40.000

Quarenta mil won. Nem dava pra comprar mantimentos decentes pra uma semana.

O celular tremeu na mão dele. A mandíbula travou.

A respiração mudou.

A raiva não era nova. Era como uma velha amiga morando sob a pele, só esperando o momento certo pra mostrar os dentes. Cada notificação era um tapa no rosto. E junto da raiva... veio a lembrança. A ferida. O passado.

---

FLASHBACK

Kang Ryu tinha oito anos quando percebeu que o mundo era um lugar injusto. A casa onde cresceu ficava nos fundos de uma vila pobre em Daegu, paredes finas, chão de madeira apodrecida. A mãe, Kang Hyesun, era uma mulher bonita — bonita de um jeito triste, como uma rosa podre em um vaso limpo. Ex-ômega de vitrine, tinha cabelos castanhos lisos que viviam oleosos, olhos escuros e pesados como se estivessem cansados de enxergar. Sempre com roupas justas demais, perfume forte demais, e dentes amarelados de cigarro e cansaço. A voz dela era melada de sarcasmo, e o riso parecia mais um deboche constante do mundo.

Hyesun nunca trabalhou. Preferia gastar. Viciada em pílulas, cigarros, bebidas baratas e atenção masculina.

O dinheiro que entrava... saía.

Sapatos. Jóias falsas. Salões de beleza. Remédios comprados por debaixo da mesa. Roupas novas todos os meses.

O pai, Kang Joohyuk, era o oposto. Alfa silencioso, mãos calejadas, barba por fazer. Era magro e alto, com costas largas e olhos afundados no cansaço. Trabalhava como motorista, carregador, garçom, pedreiro. Onde o pagassem, ele ia.

Voltas tarde. Cansaço eterno.

E uma tristeza constante de ver a família ruir a cada dia.

Joohyuk morreu aos 36 anos, infarto fulminante no meio do expediente.

Ryu tinha 12. A irmã, Kang Mira, tinha 11.

E foi ali que tudo começou a piorar de verdade.

Hyesun não chorou.

Pegou o pouco que sobrou do seguro e queimou em roupas novas, aparelhos eletrônicos, dívidas com agiotas e um namorado mais jovem.

Depois... as cobranças começaram a cair nos ombros errados. Nos ombros de Ryu.

Ele se tornou o "homem da casa" à força. Trabalhava de manhã, estudava à tarde, apanhava à noite.

Hyesun tinha mãos rápidas e palavras piores que lâminas.

Ameaçava com facas.

Batia com cabos de vassoura.

Jogava água fervendo nas costas quando ele ousava dizer "não".

Quando Ryu completou 16, conseguiu um cartão pré-pago para ajudar nas compras.

No dia seguinte, sua mãe roubou o cartão.

Fez empréstimos em nome dele. Parcelas infinitas. Juros monstruosos. Comprou uma televisão nova, uma geladeira, mais joias.

Tudo em nome de Kang Ryu.

Sujou o CPF dele antes mesmo de ele ter noção do que era um.

Foi só aos 18, quando finalmente pôde sair legalmente de casa, que fugiu.

Sumiu da cidade sem deixar endereço. Pegou um trem até Seul com uma mochila e o ódio fervendo na garganta.

Lá, conheceu as lutas.

Aprendeu a sangrar.

E fazer os outros sangrarem por ele.

Ali, encontrou a única forma de ganhar dinheiro sujo para pagar uma dívida mais suja ainda.

---

De volta ao galpão, Ryu apertava o celular com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.

O saldo de ₩40.000 brilhava na tela como uma piada cósmica.

Ele se levantou, foi até o banheiro improvisado — só um cano com um chuveirinho velho e um ralo entupido — e deixou a água cair sobre a cabeça.

A água estava fria, e ele nem piscava.

No espelho quebrado, viu a si mesmo:

Kang Ryu, 19 anos, lutador ilegal, alfa marcado por cicatrizes que ninguém via.

Nascido para ser condenado.

Mas ainda assim, ali de pé.

Frio como uma lápide.

Forte como um animal encurralado.

O inferno ainda não tinha engolido ele inteiro.

Mas estava mastigando.

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Comments

Escarlathe ( >~< )

Escarlathe ( >~< )

Não....não..............ele com esse dinheiro todo e não consegui mudar de vida saí desse lugar que parece um chiqueiro.....

2025-04-27

1

Escarlathe ( >~< )

Escarlathe ( >~< )

Ryu é a pura realidade que vc tem que supera......Eu tou achando que vai acontecer alguma coisa nessa tal festa....

2025-04-27

1

Escarlathe ( >~< )

Escarlathe ( >~< )

Mais é claro com uma mulher dessas que só pensa em gastar e mim diga como isso pode dar certo?......

2025-04-27

1

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