A cidade parecia respirar através da chuva. Um murmúrio contínuo de buzinas abafadas, passos apressados e vidas que seguiam seu curso indiferentes ao caos que borbulhava dentro de Bruno. Ele encarava o espelho novamente. A imagem refletida era outra — paletó escuro, cabelo penteado, expressão sóbria. Mas, por dentro, ainda havia a criança descalça que gritava por justiça.
Lorena o aguardava no carro estacionado logo abaixo da quitinete. Tinha conseguido um sedã discreto, blindado. O plano começava a sair do papel. Na pasta em seu colo, estava o primeiro dossiê: nomes, datas, contratos fraudados, tudo minuciosamente organizado.
— Está pronto? — perguntou ela, sem virar o rosto.
Bruno respirou fundo.
— Nunca estive tão pronto.
Os dias seguintes se transformaram em um campo de testes. Bruno, agora Daniel Souza, começou a frequentar cafés executivos, eventos menores do setor jurídico e empresarial, onde podia observar, aprender e se aproximar sem levantar suspeitas. O nome Vasconcellos ainda era um fantasma que ecoava nos bastidores — e Moretti fazia questão de enterrá-lo a cada novo contrato assinado com sorrisos dissimulados.
Foi numa dessas tardes, em um evento discreto sobre governança corporativa, que Bruno viu pela primeira vez em anos o rosto de César Moretti. O homem parecia envelhecido, mas carregava a mesma arrogância de antes. Acompanhado de seguranças e bajuladores, falava como dono do mundo. Bruno sentiu o estômago se revirar. Quis avançar, gritar. Mas Lorena, como uma sombra sempre presente, tocou seu braço com leveza.
— Ainda não. Respire.
Bruno apertou os dentes e recuou. O tempo certo viria.
Numa noite abafada de sexta-feira, Lorena trouxe notícias. Estava agitada, os olhos faiscando por trás dos óculos.
— Consegui os registros originais do hospital. Os verdadeiros. Eles haviam sido ocultados sob um número falso de prontuário. Acontece que o enfermeiro responsável pelo plantão da noite da morte do seu pai sumiu misteriosamente dois dias depois. E Bruno... olha isso.
Ela mostrou uma página. Exames de sangue alterados, níveis de medicamentos incompatíveis com o histórico clínico do pai dele. E o laudo assinado por um médico que havia sido denunciado por falsificação anos antes — mas o caso fora convenientemente arquivado.
— Eles o envenenaram.
A frase caiu como uma bomba. Bruno sentiu o mundo girar. O suor brotou na testa. Por um momento, a sala ficou em silêncio. E então, como se uma represa se rompesse dentro dele, ele desabafou.
— Eu sabia. Sempre soube. A forma como tudo foi abafado, como ninguém quis saber... Eles o mataram como se ele fosse descartável. E depois roubaram tudo. Até o meu nome.
Lorena colocou uma mão sobre a dele.
— Vamos provar. Mas precisamos de mais. Precisamos da confissão ou de um cúmplice disposto a falar. E talvez... talvez eu saiba quem pode nos ajudar.
O nome era Roberto Camargo. Um contador aposentado, ex-funcionário da Vasconcellos & Moretti. Desaparecera pouco depois da “reorganização” da empresa. Lorena o localizara em um sítio afastado, no interior do estado. Aparentemente, vivia recluso, desconfiado do mundo.
Viajaram no dia seguinte. O carro serpenteou pelas estradas por horas até encontrarem a chácara escondida entre colinas. Quando Lorena bateu à porta, foi recebida com uma espingarda apontada ao peito.
— Saiam daqui. Eu não tenho mais nada com isso.
Bruno deu um passo à frente.
— Senhor Camargo, meu nome é Bruno Vasconcellos Filho. Meu pai foi morto. E sei que o senhor sabe disso.
O velho hesitou. Os olhos se arregalaram. A arma baixou.
— Meu Deus... você... você é a cara dele.
Foram convidados a entrar. A casa era simples, mas organizada. Camargo se sentou, respirou fundo e, com a voz embargada, começou a contar tudo. Falsificações de balanços, transferências para paraísos fiscais, e a grande traição: César Moretti e Vivian Vasconcellos conspirando para derrubar o patriarca da empresa. O golpe havia sido arquitetado por meses. E a morte de Bruno pai selara o plano com perfeição.
— Eu queria contar. Juro. Mas tive medo. Eles me ameaçaram. Desapareci antes que fosse tarde demais.
Bruno escutava em silêncio. Cada palavra era uma faca cravada na alma. Mas, paradoxalmente, era também o alicerce de sua justiça.
— Você está disposto a testemunhar? — perguntou Lorena.
— Se for para que a verdade venha à tona... sim.
De volta à cidade, Lorena iniciou o processo de reconstrução legal da identidade de Bruno. Com ajuda de contatos confiáveis, o registro de desaparecido foi anulado e a certidão de nascimento revalidada. Oficialmente, Bruno Vasconcellos Filho existia novamente.
Era hora do próximo passo: infiltrar-se nas empresas. E para isso, Lorena articulou uma jogada ousada. Usando sua credibilidade como advogada, indicou Daniel Souza — seu "novo protegido" — para uma vaga de consultor em uma das holdings controladas indiretamente por Moretti. Graças ao currículo forjado com precisão, o disfarce foi aceito. Em menos de um mês, Bruno estava dentro.
Vestido com terno cinza-chumbo, gravata azul-marinho e olhar treinado, ele caminhava pelos corredores que um dia pertenceram ao seu pai. Ninguém o reconhecia. A farsa estava funcionando.
Seu coração bateu mais forte ao entrar na sala de reuniões onde Moretti fazia uma visita surpresa. O algoz de sua infância estava ali, em carne e osso, rindo com outros diretores, espalhando mentiras com a mesma facilidade com que um mágico tira cartas da manga.
— E esse é o novo consultor, senhor Moretti — disse uma gerente de RH.
O olhar de César pousou em Bruno. Por um instante, pareceu hesitar. Depois estendeu a mão.
— Seja bem-vindo ao time, senhor...?
— Daniel Souza — respondeu Bruno, apertando a mão com firmeza.
Eles se encararam. Por um instante, o mundo pareceu parar. Bruno viu nos olhos de Moretti o peso da idade, a sombra do passado. Moretti, por sua vez, não viu nada além de um rosto familiar demais para ser coincidência... mas não se permitiu suspeitar.
Naquela noite, Bruno se sentou novamente diante do espelho. Tocou o rosto. O nome que carregava era falso, mas a missão era real. Pela primeira vez, sentia que tinha o poder de virar o jogo.
O telefone vibrou. Era Lorena.
— Precisamos conversar. Achei algo... algo sobre sua mãe.
— Minha mãe? — ele congelou.
— A verdadeira. A biológica.
Bruno ficou em silêncio.
— Eu achei registros que contradizem a história oficial. Ela não morreu no parto. Há indícios de que foi internada num hospital psiquiátrico sob um nome falso.
O mundo parou. O chão sumiu sob seus pés.
— Você está dizendo que minha mãe está viva?
— Estou dizendo que é possível. E se for verdade... Moretti não só matou seu pai. Ele destruiu sua família inteira.
Bruno fechou os olhos. O sangue corria como fogo em suas veias.
A vingança agora tinha um novo propósito.
Não era mais apenas sobre justiça.
Era sobre reencontrar suas raízes.
Sobre reconstruir o que foi destruído.
E fazer o império desabar, tijolo por tijolo.
**
E você, leitor, que chegou até aqui, já sentiu o peso de ser apagado pelo mundo?
Já se olhou no espelho e viu alguém que nem você reconhece mais?
Quantas vezes chorou calado, como Bruno, com a chuva escondendo as lágrimas?
Mas talvez, assim como ele, você também esteja mais perto do que imagina de dar a volta por cima.
Porque, às vezes, tudo que o destino precisa… é de uma alma ferida, mas determinada.
E você, está pronto para reclamar o que é seu?
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Atualizado até capítulo 40
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