Capítulo 4 – As Vozes do Espelho
"Há verdades que só a lua pode guardar. E há reflexos que só se revelam quando a alma já não se reconhece."
A manhã nasceu fria, envolta numa névoa espessa que arranhava a floresta como dedos invisíveis. Morguyanna abriu os olhos antes que o primeiro raio tocasse o chão. Sua pele formigava, como se algo antigo despertasse com ela. Algo que não lhe pertencia... mas morava dentro dela desde o nascimento.
Viscenya ainda dormia, enroscada em uma manta felpuda, os cabelos negros espalhados como tinta derramada. Seus sonhos pareciam agitados. Murmurava palavras soltas, nomes que Morguyanna não reconhecia.
Vycktor estava sentado na varanda, os olhos fixos na neblina. Ao lado dele, Caos — o gato — ronronava, atento. Havia uma tensão no ar. Algo que não podia ser dito, mas também não podia mais ser ignorado.
— Dormiu? — perguntou Morguyanna, ao se aproximar.
— Dormi. Mas não descansei. — respondeu ele, sem olhar para ela. — Aelor... ele está inquieto.
— Nyxara também. — ela suspirou. — Desde que dissemos os nomes... nada mais parece igual.
Eles ficaram em silêncio por alguns minutos, observando a névoa se dissipar lentamente, revelando a clareira à frente da cabana. Então, Viscenya apareceu na porta, ainda sonolenta, mas com os olhos brilhando de algo que não era sono.
— Eu vi o espelho. — disse ela. — Nos meus sonhos. Ele não é um espelho comum.
Morguyanna e Vycktor se viraram ao mesmo tempo.
— Como ele é? — perguntou Morguyanna.
— Não tem moldura. É como uma água flutuando no ar, cercada por raízes e ossos. Ele reflete... verdades. Mas não as que você quer ver. As que você precisa.
Vycktor se levantou.
— Onde?
Viscenya fechou os olhos, como se tentasse se lembrar.
— Em uma clareira ao norte. Há uma árvore partida ao meio, com marcas como runas queimadas. A lua... fica parada ali, mesmo quando o céu está claro.
Morguyanna assentiu.
— Eu conheço esse lugar. Mas nunca vi o espelho.
— Talvez ele só apareça para quem carrega um dom desajustado. — murmurou Vis, num sorriso sem graça. — Tipo eu.
— Você não é desajustada, Viscenya. — disse Morguyanna, aproximando-se. — Você é bruxa. Uma de verdade. E seu dom não é falho. Só está... esperando por algo.
— Ou alguém. — completou Vycktor.
Vis abaixou os olhos, sentindo o coração disparar. Ela nunca se sentira tão incluída. Pela primeira vez, sentia que pertencia a algo. Que seus colapsos, suas oscilações, seus sentimentos intensos... tinham um nome. E uma razão.
— Então vamos até lá? — ela perguntou, respirando fundo.
Morguyanna hesitou por um segundo, mas então assentiu.
— Vamos.
---
A trilha era coberta por musgo e folhas mortas. A floresta parecia observá-los, como se sussurrasse histórias em línguas esquecidas. Viscenya caminhava à frente, os dedos roçando os galhos e raízes, sentindo pulsações, toques de memória e sombra.
Ao chegarem à clareira, o tempo pareceu parar.
A árvore partida estava ali, exatamente como ela vira em sonho. Queimaduras em forma de runas marcavam sua casca. O ar era mais denso, como se algo os pressionasse. E ali, entre duas pedras cobertas de líquen... flutuava o espelho.
Ele não refletia rostos.
Refletia... essências.
Morguyanna se viu primeiro — ou melhor, viu Nyxara. Olhos de ouro, pele de luar, cabelos prateados que jamais existiram no mundo mortal. Uma deusa caída.
Vycktor viu Aelor — não com ódio, mas com um olhar de dor profunda. Um lobo feito de cinzas e fogo, acorrentado por escolhas que não lembrava ter feito.
Viscenya, porém... não viu nada.
Nada.
— Por que eu não apareço? — ela sussurrou, angustiada.
O espelho brilhou. Palavras surgiram como brasa sobre água:
"Somente os que sabem o nome da sua dor podem ver o reflexo do seu poder."
Viscenya caiu de joelhos.
— Eu não tenho nome. Nem diagnóstico certo. Nem um destino claro. Não sei o que sou!
Morguyanna ajoelhou-se ao lado dela e a abraçou com força.
— Então vamos descobrir juntas.
O espelho se partiu em quatro feixes de luz, cada um voando numa direção da floresta. Um deles mergulhou no peito de Vis. Outro no de Morguyanna. Um terceiro em Vycktor. E o último... desapareceu.
— O que isso significa? — ele perguntou, tocando o próprio peito, onde a marca brilhava sob a pele.
— Que o tempo começou. — respondeu Morguyanna. — E que agora... não há mais volta.
Ao longe, um uivo rompeu o céu claro. Mas não era de um lobo. Era de algo mais antigo. Algo que lembrava... perda.
Ou luto.
E então a lua surgiu no céu claro do meio-dia.
E todos souberam que estavam sendo observados.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 36
Comments