A floresta escuta

Capítulo 2 – A Floresta Escuta

"A floresta não julga. Ela apenas observa, memoriza... e cobra."

O chão sob os pés de Morguyanna parecia pulsar. Como se cada raiz reconhecesse sua presença e a aceitasse como parte de si. A Floresta Negra não era só seu lar. Era sua testemunha.

— Acha mesmo que andar com um lobo enfraquecido e uma bruxa descontrolada é um bom plano? — murmurou Vis, chutando uma pedra. — Porque, sinceramente, eu já tive ideias melhores. Como enfiar um garfo na tomada, por exemplo.

— Ainda não aprendeu a ficar em silêncio, né? — disse Vycktor, com um sorriso torto.

— O silêncio me dá alergia. — ela retrucou. — E além disso, alguém precisa narrar a tragédia em tempo real.

Morguyanna caminhava à frente, escutando a troca de farpas com um quase sorriso. Era reconfortante, de algum modo estranho, ver dois desconhecidos trocando farpas como se fossem velhos conhecidos. Talvez aquilo fosse o começo de algo. Um lar, ainda que improvisado.

— Precisamos sair do centro. — ela disse, parando. — A clareira já não é segura. Se o veneno foi usado, alguém sabia onde ele estaria. Vycktor não caiu por acaso.

— Tem razão. — ele concordou, ficando mais sério. — Alguém me caçou.

— E quem caçaria um lobo Alpha? — questionou Vis, arqueando uma sobrancelha.

— Alguém que teme o que está por vir.

O vento soprou forte entre as árvores, como se concordasse. Galhos estalaram ao longe, e uma coruja soltou um grito seco.

— Ótimo, aí vem o clima de suspense. — disse Vis, abraçando os próprios braços. — Podiam, sei lá, acender uma fogueira. Cantar uma música animada. Mas não. Tem que ter som de coruja e árvore quebrando.

— Você sente as coisas, não é? — Morguyanna perguntou de repente, virando-se para a amiga.

Vis arregalou os olhos.

— O quê?

— As emoções. Dos outros. Como se fossem suas.

Vis deu de ombros, desconfortável.

— Às vezes. Mas isso não significa nada. Só quer dizer que meu cérebro é uma bagunça.

— Quer dizer que seu dom é empático. E muito forte. — completou Morguyanna. — Você não é um caos. Você é uma bússola emocional. Só ainda não aprendeu a apontar na direção certa.

Vis respirou fundo. Não era fácil ouvir aquilo. Nunca fora. Mas algo na voz de Morguyanna fazia com que suas defesas naturais... derretessem. Como se a própria floresta confirmasse: “confie nela”.

— Eu nunca consegui controlar nada disso. — Vis confessou. — Às vezes, sinto tudo. Amor, raiva, medo, de pessoas que nem estão por perto. E às vezes... nada. Um vazio que me engole. Aí dizem que sou instável. Bipolar. Louca.

— Talvez você seja todas essas coisas. — disse Vycktor, se aproximando. — Mas também é forte. E necessária.

Vis olhou para ele como se nunca tivesse ouvido isso antes.

Morguyanna parou entre os dois. A floresta começava a clarear, revelando uma trilha antiga que ninguém além dela conhecia.

— Estamos perto da cabana. — avisou. — Mas antes, preciso que me jurem algo.

— Lá vem... — murmurou Vis.

— Que não importa o que descobrirem sobre mim... vocês não vão fugir. Nem me odiar.

Vycktor se aproximou, seus olhos dourados escuros, intensos.

— Não prometo não fugir. Nem não odiar. Mas prometo lutar contra isso... se você prometer o mesmo por mim.

Ela assentiu, com os olhos úmidos.

— E você, Vis?

— Ah, mulher... já tô aqui no meio do mato, sem internet, com um lobo quase morto e uma bruxa misteriosa. Eu já passei do ponto de volta. — ela deu um passo à frente. — E eu nunca tive uma amiga de verdade. Então se você me disser que carrega um dragão dentro de você... eu só vou querer saber se ele solta fogo mesmo.

Elas sorriram, cúmplices.

A cabana surgiu entre as árvores como se brotasse do chão — feita de madeira escura, coberta de musgo e com uma árvore crescendo atravessada pelo telhado.

Vycktor olhou ao redor, instintivamente em alerta.

— Isso é seguro?

— É mágico. — disse Morguyanna. — Ninguém encontra este lugar se eu não quiser.

Eles entraram.

O interior da cabana era aquecido por uma lareira ancestral. Ervas pendiam do teto. Livros empilhados em cantos impossíveis. Um gato preto os observava do alto de uma estante, julgando em silêncio.

Vis arregalou os olhos.

— Tá... isso é muito mais legal do que eu imaginei. Tem até gato místico. — ela se aproximou dele. — Qual o nome dele?

— Caos. — respondeu Morguyanna.

— Claro. — riu Vis. — Faz todo sentido.

Vycktor se sentou em uma poltrona antiga. A dor voltava devagar, mas sua mente estava mais clara. A voz interior — o lobo — ainda estava em silêncio, mas ele sentia... que logo falaria.

Morguyanna se ajoelhou diante dele. Tirou uma erva seca de um pote, esmagou entre os dedos e sussurrou algo em uma língua esquecida.

— Isso vai arder. — avisou, antes de tocar a ferida em seu ombro.

Vycktor gemeu, os músculos tensionados.

— Você gosta de dor? — ele perguntou, tentando sorrir.

— Só de vê-la indo embora. — ela respondeu, com firmeza.

Vis os observava em silêncio, os olhos marejados, mas não sabia por quê. Talvez estivesse sentindo demais. Ou talvez... fosse o começo de algo maior.

A floresta, lá fora, continuava a escutar.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!