Cavalo "Trapaça"

O sol está alto no céu quando Miguel me chama para acompanhar uma nova tarefa. Ele parece animado, com um brilho nos olhos que não consigo decifrar.

- Hoje cê vai conhecer um dos tesouros da fazenda. Diz ele, enquanto seguimos por um caminho de terra batida que leva a outro estábulo, mais afastado.

- Outro estábulo? Pergunto, curiosa.

- Sim, é onde o Campeão fica. Ele sorri, orgulhoso.

- O cavalo pessoal do Dr. Gabriel. Ele concluí.

Ao chegarmos, a estrutura do estábulo chama minha atenção. É maior e mais bem cuidado do que os outros, com paredes de madeira polida e cercas altas. Assim que entramos, meus olhos são atraídos por um cavalo magnífico. Um cavalo alto, preto, imponente e musculoso, que relincha suavemente ao nos ver.

- Esse é o Campeão. Miguel anuncia, gesticulando com a mão.

- É um trotador de raça. Dr Gabriel o usa não só para montar, mas também para procriar com as fêmeas do outro estábulo.

- Ele é lindo. Sussurro, maravilhada. O animal parece quase majestoso, com o pêlo brilhante, que reluz sob a luz que entra pelas janelas do estábulo.

- Ele sabe disso. Miguel ri.

- Ele é mimado, recebe o melhor tratamento. É o chamego do patrão.

Enquanto Miguel fala, um som forte de relincho ecoa de uma das baias mais afastadas. É um som agressivo, carregado de dor e frustração.

- Que som foi esse? Pergunto, virando-me na direção do barulho, não sei distinguir se era um animal ou um funcionário derrubando tudo.

Miguel suspira, e seu sorriso se desfaz.

- É o Trapaça. Um cavalo indomável que o patrão ganhou de um devedor. Ele precisa ficar isolado porque é agressivo, traiçoeiro. Tentamos treiná-lo, mas ele não confia em ninguém. Ele se machuca, machuca os treinadores e os outros cavalos... Ele diz balançando a cabeça.

- O Dr. Gabriel decidiu que é melhor mantê-lo afastado.

- Afastado? Ele está isolado! Isso não é certo! Respondo, sentindo a indignação crescer em mim.

Miguel coloca a mão no meu ombro, tentando acalmar-me.

- Lívia, não é tão simples assim. Ele é perigoso.

- Claro que é. Ele está isolado, sem conviver com outros animais ou pessoas. Até você seria.

Minhas emoções ficam à flor da pele dada tamanha loucura.

- Isso é um absurdo. Não vou concordar com isso. Eu digo mas antes que Miguel possa me deter, saio do estábulo com passos decididos.

- Para onde você vai? Ele pergunta, surpreso enquanto me afasto sem olhar para trás.

- Falar com o Dr. Gabriel!

- Livia não! Espere. Ele tenta dizer algo, mas eu ignoro.

Entro na casa grande e vou direto ao escritório na fazenda, a porta está fechada então bato na porta.

"Toc, Toc, Toc"

As batidas saem mais firmes e urgentes do que eu previa.

- Entre.

Abro a porta e sinto meu rosto corar de raiva.

- Eu preciso falar com você. Eu digo sem hesitar.

- Diga logo. Tenho trabalho a fazer. Ele responde em um tom seco, mas não me intimido.

- Que loucura é essa de manter um cavalo trancado e afastado de todos? Você não pode trata - lo assim...assim como se fosse um...um...

- Um o quê? Um animal? Ele é um animal, e bem perigoso. Ele diz me interrompendo.

- Sim é com amor que se muda as coisas. Eu digo tentando argumentar.

Ele suspira, fecha a pasta que estava a sua frente e cruza os braços.

- Amor? Amor nem existe. É assim que tem que ser. Ele é selvagem, perigoso.

- Perigoso ou incompreendido? Eu digo e dou um passo à frente, a voz subindo um tom.

- Ele precisa de cuidado, de carinho, amor e não de isolamento!

Ele se levanta apoiando as mãos na mesa e me encara...sou incapaz de decifrar a sua expressão.

- Você tem a ousadia de entrar no meu escritório, me fazendo perder tempo, para se intrometer em algo que nem conhece. E digo mais... você não manda aqui garota. Você é só mais uma empregada. Eu faço o que quiser com o que é meu.

Eu recuo.

- Certo, além de isolar pretende sacrificar. Essa é a sua solução? Porque é isso que você está planejando, não é? Eu digo o desafiando.

- Não é da sua conta. Sua resposta é curta, e antes que eu possa continuar, ele dá as costas e sai do escritório, me deixando sozinha.

Minha respiração está pesada, minhas mãos tremem tamanho o nervoso. Respiro fundo e saio do escritório. A conversa com Gabriel só aumentou minha revolta. Como ele pode ser tão insensível?

Caminhando pelo pomar, vejo uma macieira cheia de frutos maduros. Sem pensar muito, pego uma maçã vermelha, brilhante, e sigo de volta para o estábulo.

O Trapaça está na última baia, afastado de tudo. Seu relincho ecoa novamente quando me aproximo, mas desta vez em um tom mais baixo.

- Oi, garoto... digo suavemente, parando a alguns metros de distância. Ele se vira para mim, os olhos escuros e brilhantes me encarando.

Seguro a maçã à frente, tentando mostrar que não sou uma ameaça.

- Não vou te machucar, prometo. Minha voz é calma, quase um sussurro.

Ele bate os cascos no chão, desconfiado, mas não recua. Dou mais um passo, meu coração martelando no peito.

- Você é lindo, sabia? Não deveria estar aqui, sozinho. Continuo falando, mesmo que ele não possa entender.

Quando chego mais perto, ele relincha novamente, mas desta vez não parece tão agressivo. Estico a mão com a maçã, minha respiração presa na garganta.

- Vamos, garoto... É só uma maçã. Aproveita parece estar bem docinha, o cheiro está bom.

Ele dá um passo hesitante para frente, as narinas se alargando enquanto cheira o fruto. Finalmente, ele pega a maçã da minha mão, se afasta novamente e mastiga devagar.

- Viu? Não sou tão ruim assim. Um sorriso surge no meu rosto enquanto ele termina de comer.

Fico ali por mais alguns minutos, conversando com ele como se fosse um amigo antigo. Antes de sair, passo a mão gentilmente pelo portão de madeira.

- Obrigada por não me machucar ontem. Você é muito mais inteligente do que eles acham. Minha voz quebra um pouco, mas consigo me recompor.

- Até amanhã, Trapaça.

Saio do estábulo, sentindo uma mistura de alívio e determinação. Não vou deixar que Dr. Gabriel tome uma decisão tão cruel. Alguma coisa precisa mudar, e eu farei o possível para proteger aquele cavalo.

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