O céu alaranjado da noite iluminava os passos cansados de Mikaela. A longa caminhada para casa nunca parecia terminar, e seus pensamentos rodavam como um carrossel. Seu uniforme estava amassado, a bolsa pendendo de um ombro com o peso das contas, da vida, de tudo. Era sempre a mesma coisa: trabalho, cobranças, as lembranças sufocantes de uma vida que parecia escorregar por entre seus dedos.
Quando chegou ao portão velho, hesitou. Algo parecia errado. Não havia som vindo da casa – nenhuma TV ligada, nenhuma tosse arrastada de seu pai. Um silêncio estranho envolvia o lugar como um cobertor desconfortável. Com um suspiro, abriu o portão que rangeu alto, o som ecoando na quietude.
Assim que girou a maçaneta da porta e entrou, tudo pareceu parar. Seus olhos se arregalaram, e a respiração ficou presa na garganta. O pequeno espaço que chamava de sala estava em penumbra. No meio do chão, perto da poltrona encardida, estava ele.
— Pai? — a palavra saiu quebrada, um sussurro carregado de medo.
O corpo dele estava jogado no chão, imóvel, com sangue escorrendo de um corte profundo na cabeça. Mikaela largou a bolsa no chão com um estrondo abafado e correu até ele, ajoelhando-se ao lado de sua figura inerte.
— Por favor, me responde... — Sua voz tremia. As mãos hesitantes tocaram o rosto dele, buscando algum sinal de reação, qualquer coisa que não fosse aquele silêncio apavorante.
Os olhos dela dançavam de um lado para o outro, buscando entender o que havia acontecido. Uma garrafa quebrada jazia ao lado dele, misturada com cacos de vidro e o cheiro amargo de álcool que impregnava o ar. As lágrimas começaram a escorrer, quentes, pelas bochechas dela, mas Mikaela mordeu os lábios, tentando controlar o pânico.
O desespero fazia com que tudo ao redor de Mikaela parecesse mais distante, como um ruído abafado de fundo. Seu corpo tremia enquanto as mãos reviravam sua bolsa com pressa, mas era como se o celular tivesse evaporado junto com qualquer sensação de controle. Sua respiração ficava cada vez mais irregular, os olhos já turvos de lágrimas fixando-se no chão por um instante – foi então que notou.
O amuleto.
Estava ali, repousando na mesa proximo ao seu pai que deixara apos correr até ele, como se a chamasse. A luz que emanava dele não era comum. Um brilho suave, dourado, quase vivo, pulsava como se compartilhasse da angústia que ela sentia naquele momento.
Com as mãos trêmulas, Mikaela estendeu o braço e pegou o pequeno objeto. Era frio ao toque, mas o brilho parecia esquentar à medida que seus dedos o envolviam. De perto, ela notou que havia inscrições delicadas e intricadas gravadas em sua superfície, marcas que não faziam sentido para ela. Enquanto o segurava, uma lágrima escorreu de seu rosto, caindo sobre o amuleto e desaparecendo como se fosse absorvida.
Seu coração deu um salto. Algo dentro dela sussurrou, como se o próprio amuleto tentasse se comunicar, mas não eram palavras claras, apenas um sentimento – urgência. Confusão e uma estranha atração a dominaram, mas sua atenção foi rapidamente puxada para a carta ao lado dele.
Com cuidado, ainda apertando o amuleto em uma mão, ela pegou a carta. A caligrafia era elegante, fluida, como de outra época. Ao abrir, as palavras brilhavam levemente, fazendo seus olhos fixarem-se na mensagem que parecia tão sagrada quanto incompreensível.
"A luz que você segura é a chave para o que foi perdido e o que ainda será encontrado. Sob o sangue, as sombras despertam. Apenas aquele que caminha na linha entre o humano e o imortal pode abrir o véu. Escolha sua coragem, pois o despertar tem um custo – e o que for chamado virá não só para servir, mas para julgar. Quando o coração pulsar em uníssono com as trevas, a porta se abrirá."
Mikaela engoliu em seco, seus dedos apertando o amuleto com mais força. As palavras ecoavam em sua mente como um enigma que ela não conseguia entender. Um arrepio percorreu sua espinha. Apesar da escuridão, do medo e da dor ao seu redor, havia algo mais – uma presença invisível, mas inconfundível, como se os olhos de alguém a estivessem observando de muito perto.
A jovem segurava o amuleto com força, como se ele pudesse, de alguma Forma, lhe oferecer respostas ou proteção. Ela esperava por algo. Um sinal. Um milagre. Mas nada aconteceu. O brilho que antes parecia tão intenso começou a enfraquecer, retornando a um estado quase apagado.
Com um suspiro trêmulo, ela fechou os olhos, tentando acalmar sua mente e sufocar o pânico que ameaçava dominá-la. A realidade, cruel e implacável, voltou a pesar em seus ombros. Precisava ser rápida. Soltou o amuleto em sua bolsa e, mais uma vez, começou a procurar pelo celular.
Dessa vez, encontrou o aparelho no fundo, preso entre um maço de lenços e uma pequena carteira. Com dedos ainda trêmulos, destravou a tela e discou o número da emergência. A voz da atendente, tranquila e profissional, soou do outro lado da linha, pedindo as informações necessárias.
— Meu pai... Ele está no chão. Há muito sangue. Por favor, enviem alguém rápido. — Mikaela tentou manter a voz firme, mas era quase impossível conter o tremor.
— Pode nos dizer o endereço? — perguntou a atendente.
Entre soluços e respirações entrecortadas, Mikaela forneceu os detalhes. A atendente a orientou a tentar manter o pai consciente e garantir que ele não se movesse até a chegada da ambulância.
A noite estava cada vez mais densa, o silêncio da rua só reforçando o caos que parecia consumir sua vida naquele momento. Enquanto esperava a ajuda chegar, olhou para o rosto pálido de seu pai. Ele ainda respirava, mas parecia inconsciente, murmurando palavras que Mikaela não conseguia entender.
Ela sentou ao lado dele, apertando levemente a mão do homem que tantas vezes a decepcionou, mas que ainda era tudo o que tinha. Naquele instante, as lágrimas não eram de desespero, mas de exaustão. O peso daquela rotina cíclica e sufocante parecia se multiplicar.
A sirene distante finalmente rompeu o silêncio. Ela se levantou rapidamente, indo até a porta para esperar a ambulância. Apesar de toda a confusão, uma única ideia se infiltrava em sua mente: o amuleto e a carta. O que aquilo realmente significava?
Enquanto os paramédicos entravam para prestar socorro ao seu pai, Mikaela olhou para a bolsa onde havia guardado o estranho artefato, sentindo uma mistura de temor e atração. Talvez aquela fosse a última peça de um quebra-cabeça que ela ainda não sabia como montar.
O dia finalmente começava a clarear, trazendo uma luz pálida que invadia a sala de espera do hospital. Mikaela estava sentada em uma das cadeiras desconfortáveis, abraçando a si mesma, enquanto o cansaço e a angústia consumiam suas forças. A noite tinha sido longa e cruel, trazendo lembranças dolorosas que insistiam em assombrar sua mente. Seu coração parecia distante, quase entorpecido, como se recusasse a aceitar o que estava por vir.
De repente, sua bolsa começou a esquentar. Ela ergueu os olhos, confusa, percebendo que o amuleto, ainda escondido ali, pulsava em luz, emitindo um brilho frenético. As batidas aceleradas pareciam acompanhar os próprios batimentos de Mikaela.
Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, uma voz grave e compassiva quebrou o silêncio.
— Com licença? — Um homem alto estava diante dela, vestindo o uniforme impecável de um médico. Seu rosto era algo quase irreal, detalhado como uma obra de arte, mas seus olhos refletiam pesar.
Mikaela se levantou, lutando contra o turbilhão de emoções que apertava seu peito.
— Meu pai... ele está bem? — a voz saiu baixa, trêmula.
O homem hesitou, respirando fundo antes de responder.
— Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Mas ele sofreu um trauma grave na cabeça, agravado pelo consumo excessivo de álcool. Infelizmente, ele não resistiu.
Aquelas palavras ecoaram como um golpe direto em Mikaela. Sua visão ficou turva, e por um momento parecia que o chão sob seus pés tinha desaparecido.
— Não... não pode ser. — sussurrou, sua voz quase inaudível.
O médico tentou consolá-la, mas suas palavras pareciam distantes, abafadas pela crescente maré de dor que consumia Mikaela. Ele se afastou, respeitando o espaço dela, deixando-a sozinha com a realidade devastadora.
O brilho do amuleto em sua bolsa cessou quase imediatamente. Era como se aquele objeto soubesse o que havia acabado de acontecer, como se refletisse a perda irreparável que Mikaela agora carregava. Ela abriu a bolsa, pegou o pequeno objeto em suas mãos e o encarou, buscando um significado, uma explicação.
Mas a única coisa que encontrou foi a sensação esmagadora da solidão.
Agora, sem ninguém ao seu lado, Mikaela sentiu o peso absoluto de estar sozinha no mundo. As lágrimas começaram a escorrer, silenciosas, enquanto a dor silenciosa dava espaço a uma determinação inexplicável. O amuleto parecia pesado, quase chamando-a para algo maior, algo que ela ainda não compreendia.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 22
Comments