Episódio 2 - Voltando pra casa

Aimée sentiu um calafrio na boca do estômago ao se aproximar do atalho estreito. Era fim de tarde do terceiro dia de viagem, nuvens pesadas se formavam a leste do Mississipi, mas a luz do crepúsculo era suficiente para iluminar seu caminho.

Como era possível sentir saudade dali?

Através do pára-brisa já parcialmente coberto pela poeira da estrada, ela viu a distância o bosque de amoreiras e carvalhos, que cercava a velha fazenda e, mais além, os algodoeiros que se estendiam a perder de vista.

Quanto tempo fazia?

Sete... oito anos?

Apenas isso havia realmente passado desde que ela fugira dali. — Uma adolescente solitária e assustada de dezoito anos, desesperada para construir uma vida nova. Tanta coisa mudara, ela era tão diferente agora, que não parecia possível que a visão daquele lugar ainda tivesse o poder de perturbá-la.

Quanto mais se aproximava da casa, mais lembranças a tomavam de assalto.

Elas nunca cessariam de atormentá-la?

Por quanto tempo ela ainda teria de pagar por um erro?

Envolvida na teia dos pensamentos, Aimée continuou ao volante depois de estacionar o carro, olhando para fora sem, contudo, enxergar nada. Não queria pensar, não queria recordar... Mas mágoas passadas e antigos anseios pareciam cercá-la.

Contra sua vontade, imagens lhe vinham à mente, a princípio nebulosas e pouco a pouco ganhando contornos mais distintos.

Verão e umidade, calor e chuva... Um celeiro escuro e abandonado, o cheiro de feno recém-ceifado impregnando. 0 ar... Um homem alto e moreno, sua pele quente e molhada colada intimamente à sua sob o clarão de um relâmpago... Há quanto tempo...

Aimée fechou os olhos, massageando as têmporas latejantes. Não! Não podia pensar nele. Não naquele momento, com tantas memórias invadindo sua mente. Aquele homem não mais existia para ela, não passava de uma lembrança. E ela não tinha mais nada da jovem ingênua de quem ele se aproveitara. Era uma mulher agora, que nunca esqueceria a lição que ele lhe ensinara, que conhecera o preço da rendição da forma mais dura... na própria pele.

Reabrindo os olhos, ela afugentou os fantasmas do passado e saiu do seu carro importado.

Uma rajada quente de vento arrebatou alguns fios dos cabelos presos na nuca.

Afastando-os impacientemente do rosto, ela tratou de tirar a bagagem do porta-malas.

A ameaça de chuva pesava no ar mormacento do mês quente e extremamente úmido de junho, infundindo uma morosidade nada característica aos movimentos dela. O suor escorria por entre os seios, molhando a blusa de seda, e as calças colavam nos quadris.

Por mais estranho que parecesse, durante oito anos ela tentara apagar as lembranças daquele lugar e tudo que conseguira esquecer fora o calor implacável da Louisiana, que queimava as plantações e aquecia as águas indolentes do rio nas imediações.

Aimée subiu os degraus da varanda vergados pelo tempo. As tábuas rangeram sob seus passos. Sua mão tremia ao puxar a tela rasgada e girar a maçaneta da porta.

"Se você deixar esta casa, não permitirei que volte enquanto eu viver."

Essas palavras soaram involuntariamente em sua memória e ficaram a ecoar em seus ouvidos, tomando os sentidos de assalto com uma amargura de longa data que lhe impregnava a alma como o cheiro de mofo na casa escura, o cheiro de esperanças perdidas e sonhos frustrados. A tensão a imobilizou por um instante. "Tenho de fazer isto", lembrou a si mesma. Então, num gesto decidido, endireitou os ombros e penetrou na fortaleza de seu passado.

A casa parecia tão vazia... tão silenciosa. Ainda era difícil acreditar que seu avô havia realmente partido daquele mundo. De certa forma, esperava encontrá-lo ali... esperando para condená-la, como no dia em que lhe lançara aquelas palavras brutais.

Embora a dor lhe dilacerasse o coração, Aimée permaneceu impassível. Nunca mais permitiria que a fraqueza emocional a traísse. Nunca mais as circunstâncias, a tornariam um peso para alguém que não a queria.

Uma trovoada eclodiu seguida pelo clarão de um relâmpago, que iluminou seu caminho até o quarto que uma vez dividira com a irmã, Ellie.

Ela acendeu o abajur de cerâmica numa das mesinhas-de-cabeceira. Uma luz suave e amarelada se difundiu pelo pequeno cômodo, disfarçando os sinais de deterioração. Sobre a colcha de retalhos ainda repousavam as almofadas de crochê que Ellie fizera com tanto esmero. Ao apanhar uma delas e passar a mão sobre o trabalho intricado, os pensamentos de Aimée voltaram novamente no tempo e ela pôde ouvir a voz da irmã, sempre suave, mesmo quando eram crianças...

— Olhe para esta, Aimée. Mamãe gostará, não? Vou guardá-la para lhe dar no Natal.

Estavam na sala as duas com o avô. Diante do orgulho da irmã, Aimée sorriu e ia elogiar seu trabalho manual quando um farfalhar de jornal e uma risada amarga chamaram a atenção das duas para o homem grisalho, carrancudo como sempre.

— Natal! — O tom era de menosprezo. — Vão esperar muito, se pensam que verão aquela mãe desnaturada de vocês neste Natal ou em qualquer outro. Quando vão entender que ela não voltará mais para buscá-las?

Diante da rispidez daquelas palavras, Aimée fitou a irmã que, apesar de ser cinco ano mais nova, era mais sensível. Ellie não disse nada. Apenas sua fisionomia traía seus sentimentos, a dor marcando as feições delicadas.

Mais tarde, no quarto, Aimée repetiu todos os palavrões que sua memória de dez anos podia recordar.

— Odeio esse velho!... — Jurou em meio a lágrimas de raiva. — E ele odeia a gente também. Mas não faz mal, você ouviu? Vou fugir daqui um dia e nunca mais voltarei! Ele pode mandar o xerife e quem mais quiser atrás de mim. Vou cuspir na cara de todos. Ele é bruto e mesquinho e f...

— Aimée, não fale assim! — Ellie a repreendeu num sussurro. — O vovô não é assim por querer. Ele só não entende. Ele não sabe como ser carinhoso com os outros. Talvez por isso mamãe tenha deixado a gente aqui. Talvez ela quisesse que a gente ensinasse a ele...

Um nó se formou na garganta de Aimée diante da inocência das palavras da irmã falecida. Doce Ellie... Como ela havia sido cega! Como todos eles haviam sido cegos às esperanças, sonhos e necessidades uns dos outros!

A ventania se intensificava e o galho de uma árvore batia contra a vidraça, espalhando suas folhas. Aimée deixou a almofada no lugar e foi até a janela.

Já estava escuro e um relâmpago iluminou o horizonte. Um calafrio a arrepiou.

Como detestava a chuva! Mas nem sempre havia sido assim. Era engraçado como o tempo mudava tudo. Quando menina, costumava rezar pelas chuvas de verão para não ter de trabalhar nas plantações.

Suspirando, ela se recostou na janela e fechou os olhos. Imediatamente veio-lhe à mente a imagem de fileiras de pés de algodão queimados pelo sol. Como detestara aqueles dias quentes e empoeirados em que trabalhava do raiar do dia ao pôr-do-sol, até achar que desmaiaria, até as mãos ficarem esfoladas e a pele queimada com bolhas em cima de bolhas.

Mas Napoleonville era uma cidade pequena, e felizmente os vizinhos se ajudavam mutuamente, principalmente na época da colheita, trabalhando juntos nas plantações. Havia sido numa dessas épocas que conhecera Rafael Negrini.

Aos vinte e cinco anos, ele era sete anos mais velho do que ela, filho irrequieto de um próspero negociante do ramo de pulverização de colheitas e a paixão de toda moça da região. Ellie o considerava um "sonho" e ficava agitada toda vez que ele aparecia.

Aimée, por sua vez, achava a presença dele perturbadora. Não gostava da forma como ele a olhava às vezes. — Meio zombeteiro, meio admirado. —, Como se soubesse que ela se esforçava para demonstrar indiferença. Assim, ela o evitava quando podia e tirava do pensamento e dos sonhos aqueles músculos bronzeados reluzindo ao sol, os cabelos invariavelmente despenteados...

Aimée reabriu os olhos, sobressaltada, quando os primeiros pingos de chuva começaram a bater com violência contra o telhado. O ruído trouxe sua mente de volta ao presente.

Por que tinha de pensar nele?

Mesmo agora as lembranças eram dolorosas, tão cheias de angústia e arrependimento que às vezes lhe davam a impressão de que nunca se livraria do passado.

A cabeça doía e o cansaço começava a fazer efeito. Ela virou-se bruscamente da janela e procurou algo construtivo com que ocupar os pensamentos voluntariosos.

Seu olhar recaiu sobre as malas, e se pôs a desfazê-las. Esperava encontrar as gavetas da cômoda vazias, mas, ao abrir a primeira delas, algo lhe chamou a atenção.

O envelope estava amarelado pelo tempo e a tinta desbotada, mas Aimée reconheceu a própria caligrafia. Seu coração quase parou. Não precisava abri-lo para saber seu conteúdo. "Parabéns pelo casamento, Ellie. Seja feliz!", dizia o cartão endereçado à futura sra. Negrini.

Ela bateu a gaveta e recuou. Lágrimas encheram-lhe os olhos e a dor contraía seu peito a ponto de lhe tirar a respiração. Rael se casara com Ellie. Como pudera? E tão logo depois...

Flashback

As lembranças a envolveram num lampejo, a dor sufocante obrigando-a a recordar tudo que tentara esquecer. Se na época ela tivesse conhecimento de que uma vida podia mudar de uma hora para outra... Mundos podiam ser destruídos e corações partidos num instante, como havia lhe acontecido naquele verão de seus dezoito anos...

A primavera chegou tarde a Louisiana naquele ano, e a plantação fora atrasada devido às chuvas. Aimée estava aliviada com os raros dias de descanso antes de retomar os trabalhos pesados nos algodoais e no jardim da fazenda.

Naquela manhã, seu avô ia sair para fazer compras numa cidade vizinha a uns sessenta quilômetros de distância. Aimée o viu partir e, quando teve certeza de que estava longe o bastante para não voltar, mesmo que tivesse esquecido algo, levantou-se da cama.

Ellie ainda dormia, e por isso tomou cuidado para não acordá-la enquanto vestia seu shorts de jeans e uma camisa xadrez, que amarrou na cintura.

O ar estava quente e úmido, e o sol espreitava por detrás de nuvens até o momento, pesadas por causa da chuva do dia anterior.

Esperando que o céu se limpasse com o decorrer do dia, Aimée seguiu para seu lugar favorito às margens do rio. Foi uma longa caminhada e estava a mais de uma hora de distância de casa quando o tempo começou realmente a mudar, porém para pior.

Com uma trovoada ensurdecedora, grandes pingos de chuva começaram a cair. Aimée correu em busca de abrigo. Estava ensopada ao chegar no celeiro perto do solar antigo conhecido como Sam Coyote. Ofegante, passou pela fresta estreita da porta e na pressa não reparou no trator verde estacionado ao lado.

Estava quente e escuro no interior do abrigo, mas os dentes batiam enquanto ela passava as mãos pelos braços e pelas pernas para tirar o excesso de água. Então se curvou para torcer os cabelos.

— Ora, mas que surpresa agradável! — A voz masculina e insinuante fez Aimée se virar, os olhos arregalados de medo.

— Eu... eu não sabia que havia mais alguém... — As palavras morreram ao distinguir na penumbra um rosto sorridente: o de Rafael Negrini.

Sentado sobre um tapete de feno, ele se recostava a uma viga, uma perna dobrada e a outra estirada. Também estava ensopado da cabeça aos pés. Os cabelos escuros ainda pingavam e uma gota de água escorreu pelo pescoço, deslizando pelo tórax revelado pela camisa entreaberta.

Aimée não soube quanto tempo ficou ali parada, olhando para ele como se nunca tivesse visto um homem. Entretanto, quando seus olhares se cruzaram, uma sensação até então desconhecida a tomou de assalto. De repente, não o via com a inocência de uma criança, mas com a curiosidade de uma adolescente pela primeira vez às voltas com um misto confuso de desejo e medo, de querer sem saber o quê. Pela primeira vez ela o via como um homem.

A chuva a trouxe de volta à realidade. Uma gota de água suspensa numa fenda no teto caiu bem em cima do seu nariz.

— Ai! — ela pulou para trás, provocando o riso de Rael. Então ele se ergueu e se aproximou dela com um andar indolente.

— Ninguém lhe disse que é provável que fique toda molhada, se andar na chuva?

Os olhos claros dele estudavam-na com interesse, tirando-lhe a respiração e a fala.

Aimée apenas balançou a cabeça.

— Então alguém precisa te ensinar isso. — Ele estendeu as mãos que, embora grandes e fortes, eram maltratadas pelo trabalho árduo e pela exposição contínua ao sol tórrido, mas revelaram um toque reconfortante e gentil ao segurarem o queixo de Aimée e lhe enxugarem o rosto.

Ela estava aflita e, no entanto, faltava a ela força de vontade para se afastar.

Mantinha o olhar fixo no tórax de Rael, enquanto o toque insistente a deixava cada vez mais confusa. Estavam tão próximos que podia sentir o calor do corpo dele, e desejou abraçá-lo para acabar com o frio do seu.

Só de pensar num gesto tão íntimo, Aimée corou e seu coração disparou.

— Receio que essa camisa já esteja molhada demais para lhe fazer bem. — Ele comentou e então sorriu.

Ela engoliu em seco e quis dizer alguma coisa, qualquer coisa que dissipasse aquela tensão que crescia dentro de si. Entretanto, bastou erguer o olhar para as palavras morrerem na garganta.

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