Eram três da madrugada. Rafael Negrini bebia desde o anoitecer. Dispensando o copo, ele agora se servia diretamente da garrafa, e um tremor involuntário lhe percorreu o corpo enquanto o uísque descia como uma bola de fogo até o estômago vazio.
Enxugando a boca com o dorso da mão, ele prendeu a garrafa entre as pernas e imaginou, pela enésima vez, por que não estava completamente bêbado. Devia estar, a julgar pelo pouco que restava do legítimo uísque Macallan, reconhecidamente capaz de embotar os sentidos, afogar as mágoas e apagar da mente qualquer raciocínio coerente. Mas o efeito desejado não aparecia. Rael fechou os olhos e, apesar de uma leve tontura, as lembranças do funeral de Benício Sanzio na tarde anterior lhe afloraram na mente com nitidez. Embora não tivesse sido particularmente íntimo do avô de sua falecida esposa, a imagem do sepultamento não lhe saía do pensamento, acompanhada das palavras que esperara oito anos para ouvir.
— Ela vai voltar!... — P. V. Lombardi lhe confidenciara, estreitando os olhos contra os raios implacáveis do sol da Louisiana. — Ela disse que tentaria chegar a tempo ao enterro do avô, mas, considerando que não veio nem no de sua esposa, Rael, a irmã dela... Enfim... — Apagando o charuto com o pé, dissera um dos donos de um dos bancos mais famosos da região se limitara a balançar a cabeça freneticamente.
Rael abriu os olhos, apagando a cena da mente. Só não conseguiu banir a amargura que o corroía ao voltar a atenção para a única luz acesa no ambiente.
Num canto, uma lâmpada fluorescente iluminava um cavalete em que repousava o retrato de uma linda loira.
— Eu devia queimar essa droga!... — Ele balbuciou. E como se bastasse um olhar para destruir a tela, fixou os olhos azuis escuros nos verdes-acinzentados do retrato.
Quantas vezes ele pintara aquele mesmo rosto nos últimos sete anos?
Rael tomou outro gole da garrafa.
Era um pintor de paisagens, não um retratista. Entretanto, logo após a morte de Ellie, sua esposa apenas por alguns meses, ele sentira a compulsão de reproduzir seu rosto numa tela, capturar sua imagem numa forma concreta. Ansiara por algo que pudesse tocar, algo que pudesse ver.
Esperara que isso o ajudasse a acalmar a mente, apaziguando o sentimento de culpa e dissipando a confusão que envolvia as circunstâncias que o haviam levado a se casar com Ellie, em primeiro lugar.
Mas o retrato não atingira o objetivo terapêutico, nem produzira a imagem concebida a princípio. Rael pensara, ao buscar uma explicação para o fato, que talvez houvesse algum; verdade na observação um tanto filosófica que um amigo fizera certa vez: "Você não pinta nem com a cabeça, nem com as mãos, mas com os olhos da alma".
Na época ele apenas rira, contudo, agora, tinha motivos para se intrigar, pois em sua mente os olhos de Ellie eram castanhos e meigos, completando a aura de fragilidade do rosto alvo, porém, das sombras de sua alma, outro par de olhos emergira, esverdeados e frios. Olhos que o perseguiam... e acusavam. Olhos que, ironicamente por arte de suas próprias mãos, o fitavam com uma intensidade que se projetava da tela.
Rael se pôs de pé e, com pernas que pareciam de chumbo, cambaleou pelo pequeno cômodo até o canto onde estava o retrato.
Ele ficou parado ali por um longo tempo, as sobrancelhas cerradas, os lábios comprimidos e as feições marcadas pela tensão. Um turbilhão de lembranças invadia sua mente, trazendo consigo perguntas... sentimento de culpa... acusações. A quem condenar? Como os olhos do quadro, essa pergunta o perseguia.
Um misto de emoções angustiantes — dor, frustração, impotência — o tomou de assalto no instante fugidio em que seus dedos deslizaram pela tela fria em contraste com o calor de seu toque gentil e quase reverente.
Apesar das semelhanças, jamais se poderia tomar aquele rosto de maçãs altas e queixo altivo como os de Ellie. Aquela mulher, com olhar intenso e reflexos de sol nos cabelos, era a que ele nunca conseguira deixar de vislumbrar toda vez que fitava a esposa.
— Droga! — Rael praguejou num sussurro. Passando a mão pelos cabelos, virou-se e parou junto à janela, o olhar perdido na escuridão da noite.
"Eu poderia ter amado Ellie", ele pensou com desespero. "Devia".
Ela precisava ser amada, e no entanto, apesar de toda a meiguice, coragem e dedicação, não passara de uma luz pálida em seu caminho, insuficiente para iluminar a escuridão de seu coração. Ele não pretendera magoá-la, quisera apenas ajudá-la. Só mais tarde, tomara consciência de que seus motivos para desposá-la haviam sido distorcidos por uma tentativa egoísta de se redimir de um sentimento de culpa. Um gesto pouco nobre, um erro que prejudicara uma pessoa inocente.
Na vidraça, o rosto com a barba por fazer refletia cansaço, os efeitos da bebida e a consciência de que ele não encontraria consolo nem na escuridão. Sempre soubera que a veria de novo, que algum dia, de um jeito ou de outro, ela voltaria.
Desejava que tivesse sido mais cedo; agora tudo eram águas passadas. Talvez, apenas talvez, fosse melhor assim. Afinal, ele tivera oito anos para avaliar que tipo de mulher era realmente aquela: egoísta, indiferente, insensível.
Sentindo desprezo, Rael se virou da janela num gesto tão brusco que quase lhe custou o equilíbrio e deixou sua cabeça a girar.
Largando-se na cadeira, tomou outro gole de uísque, uma careta lhe contraindo o rosto. Novamente seu olhar recaiu sobre a mulher no quadro, a hostilidade ainda mais acentuada.
Ele a veria de novo, sem dúvida. Mas daquela vez não seria como da última.
Daquela vez diria a ela o que nunca tivera chance de dizer, uma única palavra gravada a sangue no fundo de seu coração.
Rael fechou os olhos, respirando fundo. De uma vez por todas, daquela vez ele lhe diria adeus definitivamente.
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Atualizado até capítulo 33
Comments
Sineia Soares
Achei esse primeiro capítulo muito confuso não entendi muito coisa
2025-02-13
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