Entre a Coroa e o Destino

Entre a Coroa e o Destino

O Leilão das Correntes

A chuva caía sem trégua, transformando o pátio do mercado central em um mar de lama e poças escuras. As nuvens cinzentas pendiam pesadas sobre a cidade, abafando os murmúrios e sussurros de uma multidão inquieta. Ali, no centro da praça, ergueu-se uma plataforma de madeira gasta, cada tábua rangendo sob o peso dos homens e mulheres acorrentados que aguardavam sua vez.

Atlas estava entre eles.

Ele sentia o frio das algemas de ferro em seus pulsos e tornozelos. O metal gelado parecia zombar da sua antiga vida, quando mãos nobres lhe presenteavam com anéis de ouro e sedas finas. Agora, vestia apenas um tecido áspero e sujo, que mal escondia as cicatrizes recentes das punições recebidas por um guardião impiedoso.

Seus olhos, outrora cheios de determinação, estavam fixos no chão. Não havia motivo para encarar a multidão. Ele sabia o que encontraria: rostos ávidos por negócios, olhos avaliando-o como um objeto, e cochichos sobre o “último descendente da casa de Valoryn”, um nome que, poucos meses antes, simbolizava poder e glória.

“Mais um lote,” anunciou o leiloeiro, um homem de voz rouca e com um sorriso que transbordava ganância. Ele puxou Atlas para frente como se fosse uma peça de carne. “Este aqui, senhores e senhoras, é jovem, forte e... bom de espírito!”

Atlas rangeu os dentes, mas permaneceu em silêncio. Bom de espírito? O homem claramente não sabia das batalhas que travava dentro de si: ódio, vergonha e uma dor que não parecia ter fim.

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O império de Asharyn era conhecido por sua crueldade oculta sob o verniz do esplendor. As torres do palácio brilhavam com mármore branco e ouro, mas as sombras que elas lançavam escondiam segredos que poucos ousavam confrontar. No coração desse império estava Natrix, a quinta princesa, que observava a cena do leilão de uma das janelas mais altas da torre leste.

Ela não devia estar ali. Tecnicamente, deveria estar participando de uma reunião com seus tutores para discutir os preparativos de seu casamento com Lorde Kael. Mas qualquer desculpa era válida para evitar aquele homem desagradável.

Natrix passou os dedos longos pelo vidro embaçado, sentindo o frio que parecia penetrar sua pele. Ela observou o jovem sendo puxado para frente no palco e, por um momento, seus olhos dourados se estreitaram. Algo nele a intrigou, embora ela não soubesse dizer exatamente o quê.

— Está observando os despojos, Alteza? — uma voz seca e familiar soou atrás dela.

Virando-se lentamente, Natrix encontrou-se com Ser Alden, o capitão da guarda imperial, um homem com olhos tão frios quanto o aço de sua espada. Ele a observava com uma expressão que misturava respeito e desconfiança.

— Não, apenas buscando algo para aliviar o tédio — respondeu ela com indiferença, virando-se novamente para a janela. — Alguma notícia de meu “futuro marido”?

Alden hesitou antes de responder. — Lorde Kael chegará em breve, Alteza. Talvez seja prudente que esteja preparada.

Natrix soltou um riso curto, sem humor. — Preparada para suportar a presença dele ou para fingir que o admiro?

Alden optou pelo silêncio, mas sua expressão endureceu. Ele sabia que Natrix era mais do que aparentava — uma mulher inteligente, ferozmente leal àqueles que amava, mas constantemente sufocada pelas amarras de sua posição.

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De volta à praça, a voz do leiloeiro ecoava enquanto os lances começavam. Atlas ergueu o olhar pela primeira vez, observando os rostos que o avaliavam. Homens gordos com dedos cravejados de anéis, mulheres vestidas de seda com sorrisos falsos. Cada olhar o fazia sentir como se estivesse sendo despido novamente.

“Duzentos peças de ouro!” gritou alguém.

“Trezentas!”

Aos poucos, os lances aumentavam, e Atlas sentia a raiva queimando dentro de si. Ele sabia que qualquer um desses compradores o trataria como propriedade, como algo descartável. Mas então uma voz interrompeu os lances.

— Quatrocentas.

Todos se voltaram para o homem que tinha falado. Ele estava vestido com as cores da realeza — um emblema dourado brilhava no peito de sua armadura. Ao seu lado, um estandarte da casa imperial tremulava sob o vento frio.

Atlas sentiu o ar sair de seus pulmões. Ele sabia o que significava ser comprado pela coroa. Não era apenas servidão. Era escravidão disfarçada de lealdade.

O leiloeiro, com um sorriso ganancioso, bateu o martelo. — Vendido ao capitão da guarda imperial!

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Atlas foi levado imediatamente para o palácio. O caminho até lá foi uma mistura de dor e resignação. Ele tentou não encarar as ruas cheias de gente que cochichava sobre ele. Seu corpo estava cansado, mas sua mente não parava.

Ao chegar no pátio interno, foi conduzido até a sala de espera onde ficariam os recém-adquiridos pelo império. Ele sabia que seria designado para algum papel menor — ou, pior, como bucha de canhão em alguma guerra distante.

Mas tudo mudou quando a porta se abriu, revelando Natrix.

— É este? — perguntou ela, inclinando levemente a cabeça enquanto estudava Atlas.

Ele ergueu os olhos e encontrou os dela. Havia algo nos olhos dourados de Natrix que parecia penetrar sua alma, mas ele rapidamente desviou o olhar, não querendo demonstrar fraqueza.

— Sim, Alteza. Um guarda para protegê-la — respondeu Alden.

Natrix cruzou os braços, avaliando Atlas como se ele fosse um objeto a ser comprado novamente. Finalmente, ela sorriu, um sorriso que era ao mesmo tempo provocador e misterioso.

— Espero que ele saiba seguir ordens.

Atlas, mesmo sabendo que era imprudente, não conseguiu conter a resposta que saiu de sua boca.

— Espero que as ordens sejam dignas de serem seguidas.

O silêncio na sala foi palpável. Alden arregalou os olhos, pronto para repreender Atlas, mas Natrix apenas ergueu uma sobrancelha, surpresa. Então, para o choque de todos, ela riu.

— Parece que vou me divertir com você.

Atlas sabia que aquela mulher seria um desafio, talvez o maior de sua vida. Mas no fundo, uma pequena centelha de curiosidade também crescia, mesmo que ele jamais admitisse.

E assim, sob as sombras do palácio dourado, começava a relação complicada entre o homem quebrado pela queda de sua família e a princesa que sonhava em escapar de seu destino.

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Comments

Léa Aparecida Ribeiro

Léa Aparecida Ribeiro

linda história

2024-12-16

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