II

Me sentia em volta de uma densa névoa, aonde tudo ao meu redor estava desfocado e as vozes distantes. Só pude desfrutar do silêncio enquanto estive no meu quarto, ainda tentando  entender tudo que estava acontecendo.

Tudo parecia como antes dentro do palácio, os funcionários estavam em suas rotinas, tanto dentro daquelas paredes, como do lado de fora. Mesmo que quisessem manter a rotina, estava estampado no rosto de cada um, que nada estava bem e que poderia demorar um bom tempo para as coisas ficarem novamente bem.

Vi assim como eu, minha irmã e a minha mãe vestidas em abayas pretas, assim como outras mulheres. Palavras de conforto eram ditas ao fundo, enquanto o choro era segurados por fungadas discretas. Não conseguia fazer outra coisa, além de manter a minha cabeça baixa a todo instante, lembrando da última vez em que meu pai cercado de guardas e com seu conselheiro Omar ao lado, um aceno de cabeça foi tudo que ele fez, antes de passar por mim.

Não lembrava dele sendo carinhoso conosco, comigo. Muito menos com a minha mãe ou sua segunda esposa, mãe de Amina. Estava sempre ocupado com alguma coisa e cumprindo suas responsabilidades de Emir, mas mesmo em meio a tudo isso, ele sempre deixava um balão vermelho em meu quarto, talvez para dizer que havia passado por ali enquanto eu dormia.  E no meu aniversário, sempre havia vários, deixando o teto branco completamente vermelho.

- O morto sofre quando alguém se lamenta em voz alta - A voz do homem a nossa frente ecoa em minha cabeça, rígida, lembrando que não era momento de tristeza, apesar da nossa perda.

A cerimônia continuou e no final do sepultamento, me dei  conta de que não estava dormindo, mesmo eu acreditando que estava. Tudo aquilo era real. O palácio havia sido atacado e meu pai havia sido morto, e até agora ninguém havia mencionado o nome do culpado. Todos pareciam ocupados demais em enterrá-lo, em tirá-lo de uma vez daquele palácio.

— Amira, você não vai comer novamente? — pergunta minha mãe com uma expressão preocupada, me trazendo para a realidade.

Inspirando profundamente, ergo a cabeça, lembrando que estávamos na sala de jantar. A mãe de Amina, assim como a minha, tinha os olhos em mim, enquanto Amina tinha os olhos fixos no prato. Pela primeira vez, noto que a maquiagem da minha mãe está perfeita como sempre, seus cabelos baixos e

Grisalhos estão belamente ondulados, e seus brincos combinam com o colar de ouro.

Apesar de tudo, estava bonita, enquanto vivia seu  último dia de luto.

— Você está emagrecendo muito nestes últimos três dias.

— A maioria das pessoas considera isso como uma coisa boa — diz Amina em tom seco, atraindo a atenção delas, mas para satisfazê-la,  acabo pegando outro pedaço de torta de maçã caseira.

— Não quando parece como se um chihuahua pudesse arrastá-la — diz minha mãe e empurra mais torta para mim. — Você tem que se cuidar, não pode ser tão...displicente com a própria saúde. Não quando... - Ela se detém, inspirando profundamente.

— Eu sei disso, Mãe — digo entre mordidas na torta. — Não se

preocupe, está bem? Eu só ainda não consigo acreditar que ele se foi.

— Amira, querida... — As linhas de preocupação se aprofundam nas suas feições. —Já se passaram três dias desde que Said... — Ela para e respira de novo — Olha, o que estou dizendo é que você não pode continuar sofrendo dessa forma, não é permitido. E não quero que você sofra mais - Seu olhar se torna ainda mais preocupado - Você está conseguindo dormir?

— Claro, mãe. Durmo como uma pedra. — Não é mentira, desmaio na hora que minha cabeça bate no travesseiro e não acordo até que o alarme soe. Ou pelo menos é o que acontece se eu estiver completamente esgotada.

Nas noites anteriores tenho algo que se assemelha a uma rotina normal, acordo tremendo e suando com os pesadelos daquele dia, então, faço o melhor para ficar exausta todos os dias.

- Odeio ter que interromper a refeição - diz Omar, ao entrar silenciosamente na sala de jantar e encerrar a conversa que já queria terminar com a minha mãe - Mas há um assunto importante no qual devem ficar informadas.

- Já sabemos do que se trata, Omar - diz Layla, a mãe de Amina - É sobre o novo Emir, não é?

- Exatamente isso, senhor.

Ela continua olhando para ele, esperando que ele continuasse.

- E então, quem será o novo Emir?

- Temos mesmo que falar sobre isso? - digo atraindo o olhar de todos - Meu pai morreu faz três dias.

- O luto termina hoje, Amira, se você não lembra - Layla faz questão de lembrar.

- Tudo que está acontecendo, é muito para Amira, Layla. Nem todo mundo sabe lidar com situações como essa - diz minha mãe, olhando diretamente para Amira, que parecia ter tudo sob controle tanto em sua cabeça, quanto fora dela.

- Então é melhor ela começar a lidar com a situação, como se deve ser lidada - diz ela com a voz firme, ríspida - De acordo com quem ela é.

Ambas sustentam o olhar uma da outra pelo o que pareceu ser longos minutos, mas com certeza só foi alguns segundos. Segundos suficientes para Omar pigarrear e atrair a atenção de todos.

- Ele quer falar sobre o Emir - diz Amira de forma tranquila - Não é, Omar?

- Isso, princesa - diz ele com um breve sorriso - E infelismente pelo antigo Emir não ter tido filhos homens, o trono será passado para alguém fora da família real.

- Já esperávamos por isso - diz minha mãe com um sorriso rápido, mas tenso.

- Quem será coroado então? - Layla insiste.

Omar dá um sorriso contido.

- Zayn.

Olho para Omar incrédula, jurando que não havia escutado certo. Meu olhar vai para minha mãe e Layla, nenhuma das duas pareciam surpresas, assim como eu.  Era óbvio que Zayn seria o próximo da linha de sucessão.

- Como assim? - Quebro o silêncio que havia se instalado. - Por que ele?!

- Alguém parece que não está entendendo o que está acontecendo aqui - diz Amira.

- Sei muito bem o que está acontecendo aqui, Amina.

- Não parece - diz erguendo as sobrancelhas - Não podemos nos tornar Emir sozinhas, precisamos de um marido.

- No caso, apenas uma de vocês - Layla ressalta, fazendo com que a olhássemos ao mesmo tempo - Apenas uma de vocês irá se tornar a esposa do Emir.

Olhando para a minha mãe, me dou conta de que deveria estar preocupada, assim como Layla e Amina com o que estava acontecendo ali, mas não conseguia, não quando tanta coisa havia acontecido em tão pouco tempo. E agora a notícia de que o único filho homem do meu pai, seria coroado como Emir.

E falando no diabo, ele surge como todas as vezes, de repente, sorrateiramente, para a alegria de Layla e Amira, pois se levantaram no mesmo instante e se colocaram a se curvar. Minha mãe foi a última, com um olhar direcionado à mim, que dizia claramente para fazer o mesmo.

- Tenha respeito, Amira - diz Amina, ao notar que não havia me levantando.

O olhar negro dele se fixa em mim, pairando como um eclipse, deixando tudo negro. Esta era a sensação que eu tinha toda vez que estava no mesmo lugar que ele, mas nem sempre foi assim, nem sempre o odiei com todas minhas forças como naquele momento. Um dia eu amei.

Mas isso havia ficado no passado, no agora, eu o odiava e sabia que era mútuo.

- Não  vou me curvar para ele - digo o mais claro possível, conseguindo que um silêncio profundo se instalasse no cômodo, enquanto com certeza todos se questionavam se havia perdido o juízo de vez ou algo do tipo. Já que não era o esperado naquele momento.

- Amira  - diz minha mãe num tom baixo reprovador. Já sabia que se ela pudesse dizer, diria que aquele era o momento para deixar as diferenças de lado.

Mas o problema, era que não iria deixar as diferenças de lado, principalmente ao ser informada do que Zayn pretendia fazer.

- Por hoje não vou colocar nenhuma espada no pescoço de ninguém, Samira - diz Zayn sem me olhar - Pode ficar despreocupada.

Estreito os olhos, o olhando pasma e ao mesmo tempo incrédula. Ele mal havia assumido o trono, que pertencia ao meu pai, e já estava se achando o Emir.

- Você nunca vai ser como meu pai - digo alto o suficiente para atrair atenção dele.

- Não pretendo ser como ele - Ele não me olha, fixa o olhar no vazio, num ponto invisível - Pretendo ser melhor.

- Nunca vai ser melhor do que ele - Forço um sorriso amargo, sentindo uma certa dificuldade em conseguir respirar com normalidade.

Neste momento, ele me olha, os olhos frios e sem brilho algum. Mesmo daquele jeito, não me assustava, nem um pouco. Ele ainda continuava sendo o menino medroso que conheci, que tinha medo de desobedecer o pai e ser castigado por isso. Não que eu ficasse atrás, mas as vezes decidia me aventurar, algo que ele nunca fez por conta própria.

- Com a esposa certa, irei prosperar - diz com a voz firme e com toda a convicção do mundo.

Quem por livre e espontânea vontade iria se casar com ele? Claro que ninguém, além de Amina que parecia bem animada para isso acontecer, percebia isso pelo jeito que ela sorria para ele, um sorriso sem dúvida ensaiado diversas vezes em frente ao espelho. E pela primeira vez na minha vida, nunca achei que ficaria feliz em saber que não seria escolhida para algo, que meu nome nem seria nomeado. Tínhamos motivos o suficiente para nos manter bem longe um do outro, mesmo que eu corresse o risco de ser conhecida como a cunhada do Emir Zayn.

Já estou cogitando a ideia de ir para meu quarto, quando acontece novamente. Começa como pontadas pela minha pele... um repicar quieto nos meus nervos. A explosão de adrenalina se segue, acompanhada por um terror debilitante. O ritmo do meu coração dispara e meu corpo se prepara para um ataque.     Ofegando, me viro, fechando meus punhos sob a mesa com força, olhando fixamente para os talheres sobre a mesa, mas não tem ninguém ali de quem eu precise me defender.

Existe apenas o sentimento de perigo, um sentimento de estar sendo observada. Ofegando, seguro com força a faca de prata, fazendo um grande esforço dentro de mim, contra o que estava tentando vir â tona.

Nunca vejo ninguém quando meu cérebro me engana desse modo. Muito menos os responsáveis pela morte do meu pai. Mas a sensação que estavam por perto, continuava ali, me perseguindo, me deixando com aquela paranóia estranha de que  a qualquer momento, poderia passar por tudo novamente e dessa vez poderia perder mais alguém.

Tremendo, vou levanto bruscamente, sentindo os braços magros em seguida da minha mãe ao meu redor, murmurando algo enquanto andava comigo para fora do cômodo.

Leva vários minutos de exercício de respiração antes de me acalmar, com a ajuda da minha mãe e sei que apesar do cansaço, não conseguirei dormir hoje.

Claro que minha mãe só sossegaria, quando tivesse certeza que estava bem, por isso não me surpreendi quando o Dr. Hussain apareceu no meu quarto, acompanhado pela minha aia.

— Me fale desse seu último episódio, Amira - diz o Dr. Hussain, cruzando suas longas pernas na poltrona na  frente  da minha cama — O que te fez pensar que alguém estava te olhando?

— Eu não sei. Era só... — Eu inspiro, tentando achar as palavras certas, então, balanço a cabeça. — Não era nada de concreto. Honestamente não sei.

— Ok, vamos retomar por um segundo. — Seu tom é tanto caloroso quanto profissional. É essa parte que o faz um bom terapeuta, claro, se ele fosse um,  a habilidade de mostrar que se importa enquanto se mantém separado ao mesmo tempo. —

Você disse que surgiu do nada, enquanto tinham uma conversa durante o jantar, não é? E quando se deu conta, estava sentindo estes sintomas. Mas não é a primeira vez. Certo?

— Certo.

— Você ouviu alguma coisa? Ou viu alguma coisa? Qualquer coisa que possa ter desencadeado o surto em você? Uma batida de porta, folhas voando... um pássaro, talvez?

— Não, nada específico que possa me lembrar. Eu estava apenas conversando, sobre o novo Emir, foi quando senti aquilo. Não sei como explicar. Era como... — Eu engulo, o ritmo do meu coração aumentando por causa d memórias. — Era como aquela noite, quando o palácio foi atacado e todos aqueles guardas feridos, mortos e eu só sabia pensar que tinha que fugir para bem longe.

As feições finas e inteligentes do médico tomam uma expressão de preocupação.

— Com que frequência isso está acontecendo?

— Foi a terceira vez esta semana — Admito, minhas bochechas transparecendo o embaraço quando ele anota algo no seu bloco de notas. Odeio esse sentimento de não estar no controle, saber que meu cérebro está me pregando

peças. — A primeira vez foi depois do sepultamento, quando estava voltando para o meu quarto, e agora, no durante o jantar. Eu não sei por que isso está acontecendo. Achei que era normal se sentir assim, realmente achei. Me senti genuinamente esperançosa após o café da manhã ontem. Isso simplesmente não faz sentido.

— Nossas mentes demoram a se curar, Amira, igual nossos corpos. Às vezes você tem uma recaída, e às vezes a doença toma um rumo diferente. Você precisa entender isso, para começar a se entender — Ele faz outra anotação no seu bloco de notas, então, olha para mim - Tudo isso pode ser por causa de tudo que está acontecendo, para mim não há nada de errado com você mas, se continuar, irei precisar intervir com medicamentos.

Inclino a cabeça para o lado, erguendo as sobrancelhas, levantando no mesmo instante, passando minhas mãos suadas no abaya preto.

- Acho que não vai ser necessário - digo com um sorriso tenso no rosto.

- Mas se persistir... - diz ele se levantando.

- Estou esperançosa de que não irá - A última coisa que eu queria, era ficar dependentes de medicamentos, assim como a tia Nádia, que ficou dependente de um medicamento especifico após um aborto e ter que ver o marido casar novamente.

- Qualquer coisa, só é me chamar, princesa - diz ele gentilmente se curvando levemente na minha  direção e se despedindo com um aceno de cabeça à aia.

Observo ele sair estática no lugar, soltando o ar  dos pulmões  bruscamente quando aporta se fecha. É então que começo a andar de um lado para o outro no quarto, sob o olhar da minha dama de companhia. Enquanto andava de um lado para o outro, olhava diretamente para o meu notebook aberto sobre a escrivaninha, até aquele dia, estava evitando ler as notícias, não queria ouvir diversas especulações do que iria acontecer ao nosso governo, a família real.

As apostas deveriam estar altas do lado de fora dos muros do palácio. Os súditos deveriam querer saber qual das duas princesas, assumiria o trono ao lado do novo Emir e queria poder ver o rosto deles, ao descobrir que Zayn não pensaria muito  a respeito e que seria Amira a escolhida para ser sua esposa.

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Comments

elo

elo

Palmas 👏 para essa narração

2023-03-08

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