Companheiros Predestinados
Deitado no áspero e gélido concreto, ele se esforçava para encontrar forças para levantar. Os membros do corpo nu doíam em demasia, beirando o insuportável. A corrente de ar fria vinda da janela, que surrava cruel a pele marcada de roxos e mordidas, dificultava lidar com o seu padecimento. Dor martirizante, combinado com o aterrador medo que lhe dava um abraço sufocante, o forçava a ficar imóvel, chorando silencioso.
"Será que algum dia serei salvo? O que fiz para merecer tanto sofrimento?"
Os pensamentos tolos corroíam a já gasta esperança, que insistia em brotar no peito mesmo após anos de abuso. Em seus raros sonhos bons, sempre aparecia um herói honrado que lhe salvava do seu algoz, mas quando acordava e era jogado na tirana realidade que vivia, se tornava consciente que não se passava de estúpidas tentativas de manter a fraca luz da fé acesa.
Nunca entendeu porque o alfa da alcateia o escolheu como animal de estimação. É o seu destino, você é um ômega, não tem como alterar esse fato. Persistia em acreditar naquela frase que lhe repetiam como um disco arranhado sempre que abria a boca e ousava questionar.
Após tortuosos minutos, ele inspirou fundo, apoiou as mãos no chão frio e impulsionou o corpo para cima. Estremeceu. Dor agonizante esmagou os membros, fazendo-o cambalear e as vistas avelã escureceram. Um arquejar estafante escapou dos lábios carnudos. Ausentes de firmeza, as pernas trêmulas sustentaram com esforço o restante do corpo. Em passos arrastados e lentos, ele caminhou até o banheiro — que ficava do lado esquerdo do aposento —, empurrou a porta sanfonada e adentrou o úmido cômodo.
Menos de um minuto depois ele se encontrava debaixo do chuveiro, apreciando a cascata de água morna que caía nas costas largas. Estendendo o braço, pegou o sabonete na saboneteira de alumínio e — exatamente como sempre fazia após a visita do insensível alfa — começou a passar a esponja com agressividade e força desnecessária por todo o corpo com a ingênua intenção de apagar as sujeiras invisíveis que pregavam como tatuagens na pele negra clara acinzentada.
Elas não saíam, nunca saíam.
Após incessantes minutos lutando para arrancá-las, ele aceitou a contragosto que elas não sairiam e desistiu de continuar a desgastante tarefa. A pele maltratada ardia e estava marcada, porém, ele não ligava para o ardor, apenas se preocupava com o fato de não ter conseguido se limpar.
Ele se secou rápido com a surrada toalha — engolindo os grunhidos de dor — retornou ao quarto e deitou despido na cama. Era uma madrugada fria, mas ele não se preocupou em fechar a janela ou em se cobrir, não lhe restava ânimo algum para realizar tarefas tão cansativas. Fatigado, fechou os olhos, adormecendo em instantes.
...[...]
...
O vegetativo município de Canídeos, com os seus cinquenta mil habitantes é uma das menores cidades do Estado de São Paulo. Mesmo tendo uma flora e fauna invejável, não é um município turístico.
Os jovens do século XXI que nascem ali, ansiosos por alcançar um futuro grandioso, em sua grande maioria, ao ficarem maiores de idade não hesitam em abandonar os seus pais e partirem para a metropolitana cidade de São Paulo.
Miguel já esteve entre os adolescentes que sonhavam em partir ao terminarem o ensino médio, mas, diferente de outros, ele não tinha uma família para apoiá-lo financeiramente, então, mesmo tendo certeza que merecia muito mais, quando se formou só lhe restou alugar uma pequena casa de dois cômodos e trabalhar na única livraria existente da cidade.
Bocejando, Miguel entrou na livraria às nove e quarenta da manhã, jogou o molho de chaves em cima do balcão de madeira e andou para a cozinha que ficava aos fundos. Ele sempre chegava uns vinte minutos antes e aproveitava o tempo para colocar a máquina de café para funcionar e ligar o computador. Assim que a cafeteira começou a trabalhar, ele voltou ao cômodo anterior.
Como o movimento só começava após às onze horas, ele já havia deixado as portas duplas abertas. Atrás do balcão, sentou na cadeira giratória e apertou o botão de ligar o computador. Enquanto a máquina acordava, aproveitava para organizar os objetos espalhados na superfície plana. Ao terminar, retirou o livro de ficção científica da primeira gaveta, mas como não estava a fim de ler, ficou vistoriando o espaço com as vistas, pensando no seu amigo Kayman.
Fazia quase uma semana que Miguel não via Kayman, mas não era isto que o preocupava, pois, era comum ficarem sem se verem por vários dias, considerando que o outro morava em uma fazenda há vinte quilômetros da cidade. A questão que o incomodava era que havia notado como o seu amigo mudou, de maneira nenhum pouco positiva.
Kayman sempre foi tímido, reservado e calado, eram características da personalidade dele, porém, ele não era assim com Miguel... Nos últimos meses ele percebeu que o melhor amigo estava mais reticente, inseguro e que em seus orbes claros se enraizaram tristeza e medo. Devo estar imaginando coisa, repetirá várias vezes para si mesmo no início até ser impossível ignorar o semblante desanimado de Kayman.
— Está acontecendo algo Kayman, o que é? Conte-me, quero te ajudar.
— Não está acontecendo nada, juro, não precisa se preocupar.
Ele nunca admitia, sempre se esquivava, sorria e trocava de assunto, se recusando a compartilhar com Miguel o que lhe incomodava. Preocupado e frustrado, nos últimos dias Miguel se focava em formular um plano para descobrir o que diabos havia de errado com o seu amigo.
“Eu vou descobrir, tenho certeza disso.”
...[...]
...
— Bom dia, Kalel — Daren cumprimentou o melhor amigo e sentou na frente dele.
— Até que enfim, já estava pensando que ia dormir o dia todo — brincou Kalel antes de morder um pedaço de bolo. Bom, pensou satisfeito. Nem sempre, desde o dia que começaram aquela viagem, encontravam restaurantes e pousadas que serviam comida boa.
Daren da Silva revirou os olhos e não respondeu. Ele dificilmente acordava de bom humor como o outro, quase sempre levantava ostentando uma carranca. Levantou a mão e acenou para a garçonete, que imediatamente se aproximou.
— Bom dia senhor. Já sabe o que vai pedir?
— Traga-me um pão na chapa e um café preto puro, sem açúcar.
— Certo... Deseja algo mais? — perguntou a garçonete ao anotar o pedido no bloco de notas.
— Não, somente, obrigado.
— De nada, só aguardar, já trago o seu pedido. — Ela colocou o bloco no bolso do avental, sorriu educada e se afastou.
— Só vai comer isso? — questionou Kalel sem fitá-lo, concentrado no seu bolo de cenoura.
— Só, estou sem fome.
— Você sem fome? — Ele encarou o outro com sorriso sarcástico. — É novidade.
— Parece que você esqueceu que caçamos de madrugada — Daren falou sério, apontou para os três pedaços de bolo no prato e perguntou em tom baixo: — Como diabos consegue comer tudo isso depois de ter comido dois coelhos?
Apesar da voz não passar de um sussurro, Kalel escutou sem dificuldades ou esforço em razão dos sentidos aguçados.
— Culpa do cheiro convidativo vindo da cozinha. Na pousada anterior que ficamos, a comida era uma merda, ruim ‘pra ‘caralho, não quero perder a oportunidade de comer uma comida boa.
— Você é muito estranho, isso sim. — Uma pitada de humor brilhou nos olhos de Daren.
Kalel sorriu e tornou a se concentrar nos alimentos. Instantes depois a garçonete retornou com o pedido do amigo.
— Obrigado — ele agradeceu quando ela depositou o prato e a xícara na mesa.
Daren assistiu a garçonete caminhar para a cozinha, reparando no quanto ela era bonita. Kalel notou o olhar.
— Interessado?
— Não.
Kalel também notou a beleza da garçonete, mas não sentiu atração alguma. Diferente do amigo bissexual, ele era gay.
Eles cresceram juntos na alcateia Lúpus, na mesma casa e eram melhores amigos desde sempre. Daren era um ano e seis meses mais novo que ele. O pai de Kalel era o alfa enquanto o do Daren era o beta. O laço entre eles era muito forte e desde pequeno Kalel afirmava a todos que no futuro Daren seria o seu beta. A grande maioria o apoiava na decisão prematura, Daren não sentia ter muitas escolhas e o alfa dizia que definitivamente era uma excelente ideia.
Anualmente ocorria campeonato de combate na alcateia, era uma ótima oportunidade de lobos em treinamento colocarem em prática o que aprenderam e a desafiarem os seus limites. Nos oito anos seguidos que participaram, eles venceram, provando que conseguiam viver sem a proteção dos pais e que estavam preparados para lutarem as próprias batalhas.
Quando terminaram de comer, pagaram a conta e foram para o estacionamento da pousada.
— Quanto tempo até Canídeos? — Kalel apertou o botão na chave canivete, destravando a caminhonete.
— Segundo o GPS falta cinco horas e quarenta minutos até lá. — Daren se acomodou no banco do passageiro e Kalel no do motorista. Eles revezavam no volante.
— Já avisou o alfa que chegaremos ainda hoje?
— Sim. — A caminhonete deixou o estacionamento e entrou na rodovia, seguindo em direção ao norte. — Ele pediu para avisarmos quando estiver faltando uns vinte quilômetros.
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Atualizado até capítulo 12
Comments
ho Strøm
vai ser muito bom reeler essa obra
2023-03-02
1
ho Strøm
finalmente achei
2023-03-02
0
Anônima💜💖
Adorei a escrita!
2023-01-26
0