Deitado no áspero e gélido concreto, ele se esforçava para encontrar forças para levantar. Os membros do corpo nu doíam em demasia, beirando o insuportável. A corrente de ar fria vinda da janela, que surrava cruel a pele marcada de roxos e mordidas, dificultava lidar com o seu padecimento. Dor martirizante, combinado com o aterrador medo que lhe dava um abraço sufocante, o forçava a ficar imóvel, chorando silencioso.
"Será que algum dia serei salvo? O que fiz para merecer tanto sofrimento?"
Os pensamentos tolos corroíam a já gasta esperança, que insistia em brotar no peito mesmo após anos de abuso. Em seus raros sonhos bons, sempre aparecia um herói honrado que lhe salvava do seu algoz, mas quando acordava e era jogado na tirana realidade que vivia, se tornava consciente que não se passava de estúpidas tentativas de manter a fraca luz da fé acesa.
Nunca entendeu porque o alfa da alcateia o escolheu como animal de estimação. É o seu destino, você é um ômega, não tem como alterar esse fato. Persistia em acreditar naquela frase que lhe repetiam como um disco arranhado sempre que abria a boca e ousava questionar.
Após tortuosos minutos, ele inspirou fundo, apoiou as mãos no chão frio e impulsionou o corpo para cima. Estremeceu. Dor agonizante esmagou os membros, fazendo-o cambalear e as vistas avelã escureceram. Um arquejar estafante escapou dos lábios carnudos. Ausentes de firmeza, as pernas trêmulas sustentaram com esforço o restante do corpo. Em passos arrastados e lentos, ele caminhou até o banheiro — que ficava do lado esquerdo do aposento —, empurrou a porta sanfonada e adentrou o úmido cômodo.
Menos de um minuto depois ele se encontrava debaixo do chuveiro, apreciando a cascata de água morna que caía nas costas largas. Estendendo o braço, pegou o sabonete na saboneteira de alumínio e — exatamente como sempre fazia após a visita do insensível alfa — começou a passar a esponja com agressividade e força desnecessária por todo o corpo com a ingênua intenção de apagar as sujeiras invisíveis que pregavam como tatuagens na pele negra clara acinzentada.
Elas não saíam, nunca saíam.
Após incessantes minutos lutando para arrancá-las, ele aceitou a contragosto que elas não sairiam e desistiu de continuar a desgastante tarefa. A pele maltratada ardia e estava marcada, porém, ele não ligava para o ardor, apenas se preocupava com o fato de não ter conseguido se limpar.
Ele se secou rápido com a surrada toalha — engolindo os grunhidos de dor — retornou ao quarto e deitou despido na cama. Era uma madrugada fria, mas ele não se preocupou em fechar a janela ou em se cobrir, não lhe restava ânimo algum para realizar tarefas tão cansativas. Fatigado, fechou os olhos, adormecendo em instantes.
...[...]
...
O vegetativo município de Canídeos, com os seus cinquenta mil habitantes é uma das menores cidades do Estado de São Paulo. Mesmo tendo uma flora e fauna invejável, não é um município turístico.
Os jovens do século XXI que nascem ali, ansiosos por alcançar um futuro grandioso, em sua grande maioria, ao ficarem maiores de idade não hesitam em abandonar os seus pais e partirem para a metropolitana cidade de São Paulo.
Miguel já esteve entre os adolescentes que sonhavam em partir ao terminarem o ensino médio, mas, diferente de outros, ele não tinha uma família para apoiá-lo financeiramente, então, mesmo tendo certeza que merecia muito mais, quando se formou só lhe restou alugar uma pequena casa de dois cômodos e trabalhar na única livraria existente da cidade.
Bocejando, Miguel entrou na livraria às nove e quarenta da manhã, jogou o molho de chaves em cima do balcão de madeira e andou para a cozinha que ficava aos fundos. Ele sempre chegava uns vinte minutos antes e aproveitava o tempo para colocar a máquina de café para funcionar e ligar o computador. Assim que a cafeteira começou a trabalhar, ele voltou ao cômodo anterior.
Como o movimento só começava após às onze horas, ele já havia deixado as portas duplas abertas. Atrás do balcão, sentou na cadeira giratória e apertou o botão de ligar o computador. Enquanto a máquina acordava, aproveitava para organizar os objetos espalhados na superfície plana. Ao terminar, retirou o livro de ficção científica da primeira gaveta, mas como não estava a fim de ler, ficou vistoriando o espaço com as vistas, pensando no seu amigo Kayman.
Fazia quase uma semana que Miguel não via Kayman, mas não era isto que o preocupava, pois, era comum ficarem sem se verem por vários dias, considerando que o outro morava em uma fazenda há vinte quilômetros da cidade. A questão que o incomodava era que havia notado como o seu amigo mudou, de maneira nenhum pouco positiva.
Kayman sempre foi tímido, reservado e calado, eram características da personalidade dele, porém, ele não era assim com Miguel... Nos últimos meses ele percebeu que o melhor amigo estava mais reticente, inseguro e que em seus orbes claros se enraizaram tristeza e medo. Devo estar imaginando coisa, repetirá várias vezes para si mesmo no início até ser impossível ignorar o semblante desanimado de Kayman.
— Está acontecendo algo Kayman, o que é? Conte-me, quero te ajudar.
— Não está acontecendo nada, juro, não precisa se preocupar.
Ele nunca admitia, sempre se esquivava, sorria e trocava de assunto, se recusando a compartilhar com Miguel o que lhe incomodava. Preocupado e frustrado, nos últimos dias Miguel se focava em formular um plano para descobrir o que diabos havia de errado com o seu amigo.
“Eu vou descobrir, tenho certeza disso.”
...[...]
...
— Bom dia, Kalel — Daren cumprimentou o melhor amigo e sentou na frente dele.
— Até que enfim, já estava pensando que ia dormir o dia todo — brincou Kalel antes de morder um pedaço de bolo. Bom, pensou satisfeito. Nem sempre, desde o dia que começaram aquela viagem, encontravam restaurantes e pousadas que serviam comida boa.
Daren da Silva revirou os olhos e não respondeu. Ele dificilmente acordava de bom humor como o outro, quase sempre levantava ostentando uma carranca. Levantou a mão e acenou para a garçonete, que imediatamente se aproximou.
— Bom dia senhor. Já sabe o que vai pedir?
— Traga-me um pão na chapa e um café preto puro, sem açúcar.
— Certo... Deseja algo mais? — perguntou a garçonete ao anotar o pedido no bloco de notas.
— Não, somente, obrigado.
— De nada, só aguardar, já trago o seu pedido. — Ela colocou o bloco no bolso do avental, sorriu educada e se afastou.
— Só vai comer isso? — questionou Kalel sem fitá-lo, concentrado no seu bolo de cenoura.
— Só, estou sem fome.
— Você sem fome? — Ele encarou o outro com sorriso sarcástico. — É novidade.
— Parece que você esqueceu que caçamos de madrugada — Daren falou sério, apontou para os três pedaços de bolo no prato e perguntou em tom baixo: — Como diabos consegue comer tudo isso depois de ter comido dois coelhos?
Apesar da voz não passar de um sussurro, Kalel escutou sem dificuldades ou esforço em razão dos sentidos aguçados.
— Culpa do cheiro convidativo vindo da cozinha. Na pousada anterior que ficamos, a comida era uma merda, ruim ‘pra ‘caralho, não quero perder a oportunidade de comer uma comida boa.
— Você é muito estranho, isso sim. — Uma pitada de humor brilhou nos olhos de Daren.
Kalel sorriu e tornou a se concentrar nos alimentos. Instantes depois a garçonete retornou com o pedido do amigo.
— Obrigado — ele agradeceu quando ela depositou o prato e a xícara na mesa.
Daren assistiu a garçonete caminhar para a cozinha, reparando no quanto ela era bonita. Kalel notou o olhar.
— Interessado?
— Não.
Kalel também notou a beleza da garçonete, mas não sentiu atração alguma. Diferente do amigo bissexual, ele era gay.
Eles cresceram juntos na alcateia Lúpus, na mesma casa e eram melhores amigos desde sempre. Daren era um ano e seis meses mais novo que ele. O pai de Kalel era o alfa enquanto o do Daren era o beta. O laço entre eles era muito forte e desde pequeno Kalel afirmava a todos que no futuro Daren seria o seu beta. A grande maioria o apoiava na decisão prematura, Daren não sentia ter muitas escolhas e o alfa dizia que definitivamente era uma excelente ideia.
Anualmente ocorria campeonato de combate na alcateia, era uma ótima oportunidade de lobos em treinamento colocarem em prática o que aprenderam e a desafiarem os seus limites. Nos oito anos seguidos que participaram, eles venceram, provando que conseguiam viver sem a proteção dos pais e que estavam preparados para lutarem as próprias batalhas.
Quando terminaram de comer, pagaram a conta e foram para o estacionamento da pousada.
— Quanto tempo até Canídeos? — Kalel apertou o botão na chave canivete, destravando a caminhonete.
— Segundo o GPS falta cinco horas e quarenta minutos até lá. — Daren se acomodou no banco do passageiro e Kalel no do motorista. Eles revezavam no volante.
— Já avisou o alfa que chegaremos ainda hoje?
— Sim. — A caminhonete deixou o estacionamento e entrou na rodovia, seguindo em direção ao norte. — Ele pediu para avisarmos quando estiver faltando uns vinte quilômetros.
— Por que fica conferindo o relógio a cada cinco minutos? Aconteceu algo?
Miguel desviou as vistas do relógio de pulso e as pousou em Rael, sentado ao seu lado e o fitando com curiosidade.
— Não, só quero que dê logo o meu horário — respondeu apressado.
— Sabe que pode contar comigo, certo? Se precisa de algo, basta dizer.
Antes que Miguel respondesse, uma mulher de meia-idade, ‘baixinha se aproximou e solicitou a Rael ajuda para encontrar um livro. Ele conferiu o relógio novamente. Bufou. Faltava mais de duas horas para o fim do seu expediente, o tempo não passava.
Ele cogitava visitar de surpresa Kayman quando saísse do trabalho, mas não fazia a mínima ideia de como seria recebido. Poucas vezes foi na casa do amigo, pensando bem, só se lembrava de ter ido lá três vezes. Ele não entendia a razão de não ser convidado, mas respeitava o limite do outro e não insistia.
Sinceramente ele não queria invadir a privacidade do amigo, porém, não lhe restava alternativa, precisava descobrir a razão dele estar tão retraído e assustado.
Quando restavam trinta minutos para o fim do expediente, Miguel se lembrou de Caíque, alguém com quem não tinha muito contato ou intimidade, mas que era amigo próximo do Kayman. Abriu a agenda no celular e verificou os contatos até localizar o de Caíque. Não tinha certeza se ele ainda usava aquele número, mas não custava tentar, né? Discou a ligação e cruzou os dedos mentalmente.
— Alô?
— Caíque? — perguntou, incerto.
— Oi! Ele mesmo. — Miguel suspirou, aliviado. — Quem é?
— É o Miguel.
— Oi Miguel, tudo bem?
— Tudo sim. Hum! ‘Tá muito ocupado? Preciso muito falar com você, pessoalmente.
— O que aconteceu? Consegue adiantar algo?
— É sobre o Kayman…
— Entendo... — Miguel notou a hesitação na voz de Caíque e o silêncio que se seguiu, mas escolheu ignorar.
— Consegue me encontrar hoje, dentro de uma hora?
— Consigo sim, basta me dizer onde.
— Pensei na lanchonete dos irmãos Rodrigues, pode ser?
— Sim, sim. Te encontro lá dentro de uma hora.
— ‘Tá bom, vou estar te esperando, até daqui a pouco Caíque.
— Até.
Miguel encerrou a ligação e mesmo não sendo religioso, fez uma prece para Deus, pedindo que abençoasse aquela conversa e que lhe permitisse descobrir o que tanto ansiava.
...[...]
...
Caíque olhava fixamente a tela apagada do telefone enquanto sua mente inquieta encontrava-se longe, voltada para a conversa que acabara de ter com Miguel. Suspirou. Sentimentos conflitantes gladiavam, lutando com violência e jorrando ansiedade no seu interior.
Merda, será que foi mesmo uma boa ideia? Realmente deveria ter aceitado conversar com Miguel? Fazia meses que tentava encontrar uma forma de salvar Kayman, de ajudá-lo a escapar, aquela ligação veio na hora certa, talvez fosse justamente a oportunidade que tanto buscava. Esperança brotou, criando raízes que se entrelaçaram com as do medo.
Submerso no nervosismo, preso nos conflitos, ele se arrumou em dez minutos, abandonou o quarto e caminhou para a cozinha. Parou na entrada, assistindo o pai no fogão, distraído com alguma receita. O senhor Moacir era um lobo sentinela com 353 anos, grandes, corpulento, de personalidade calma, que tinha como maior paixão — depois da sua companheira — a gastronomia.
— Pai?
— Diga! — O homem respondeu sem virar.
— Me empresta o carro? Combinei de encontrar um amigo no centro.
— Amigo? — Moacir girou e franziu o cenho. — Está indo em um encontro? Com quem?
— Ei, não é um encontro, vou apenas me encontrar com um amigo... Miguel, conhece ele, trabalha na livraria.
— Conheço, é um bom garoto. — Pensativo, Moacir pegou o pano de prato do ombro, secou as mãos e escorou o quadril no fogão. — Mas não serve para você, ele é humano, sabe como são complicados.
— Não é um encontro, já disse... Então, vai me emprestar o carro ou não? — perguntou com leve irritação na face.
— Tudo bem, pode pegar.
— Obrigado pai, te amo.
— Dirija com cuidado — orientou preocupado.
— Eu vou, não se preocupe.
Sorrindo, Caíque acenou um 'tchau', andou para a sala, pegou a chave do veículo e saiu da casa. Dez minutos depois deixava a estrada de terra e entrava na rodovia. Gastaria uns vinte minutos até a cidade, provavelmente chegaria na lanchonete antes do Miguel, levaria aquele tempo para se preparar, pensar em como dizer a verdade perturbadora sobre Kayman.
...[...]...
A placa enorme, formando um arco na entrada da cidade, escrita “Bem vindos a Canídeos” significava que finalmente chegaram ao destino. Percorreram as ruas, seguindo as orientações do GPS, sem se preocupar em encontrar pousada ou hotel para pernoitar, também não planejavam dormir ao ar livre — como haviam feito em algumas cidades que passaram.
O alfa de Canídeos era um velho conhecido do genitor de Kalel, então receberam o convite de ficarem na casa dele quando entraram em contato semanas atrás e solicitaram permissão para adentrarem o território.
— Onde ele falou para esperarmos?
— Em frente a catedral... — Daren respondeu e apontou para a cruz de ferro cravada na construção mais alta. — Opa, acho que já encontrei.
Três quadras depois, estacionaram em frente a praça grande, enfeitada com árvores, bancos de concreto e uma fonte de água.
— A cidade é muito bonita — observou Daren, encantado.
— Verdade, mas não sei, não faz muito o meu estilo. — Eles admiravam a paisagem de dentro do carro. — Eu prefiro lugares movimentados, essa parece que congelou no tempo.
Ele não estava exatamente errado, a cidade realmente parecia ter parado tempo, não existiam prédios, fábricas poluentes, a arquitetura era colonial e nas ruas havia pouca movimentação de pessoas.
— Diferente de você, eu gosto de lugares assim. — Daren reparou no homem de fios escuros, andando apressado e sorriu malicioso. — Não é apenas a cidade que é bonita.
As vistas de Kalel seguiram as de Daren, cravando no homem pálido, com cerca de 1,80 de altura, magro, braços e pernas finas, cabelo castanho escuro com fios rebeldes caídos na testa.
“Qual é o motivo da pressa? Será que ele está indo encontrar a namorada?”
Por algum motivo inexplicável o pensamento lhe incomodou. ‘Porra. Por que diabos sentia um arranhar de ciúmes por um completo desconhecido?
— Olha, pensando bem, ‘tô começando a mudar de ideia, acredito que gosto de cidades do interior — brincou sem desviar os olhos do homem.
Quando o homem atravessou a rua, dobrou a esquina, desaparecendo do campo de visão de Kalel, os instintos dele se agitaram e o seu lobo grunhiu, inesperadamente desejando sair e perseguir o desconhecido. O que estava acontecendo? Por que a sua besta se interessava pelo estranho?
— Kalel? O que está havendo?
O tom confuso arrancou Kalel dos pensamentos e sentimentos sinuosos, ele encarou Daren.
— Nada — respondeu, confuso com o questionamento.
— Olhe ‘pras suas mãos.
Espanto desenhou na face de Kalel ao baixar os olhos a e ver as garras estendidas, pressionadas com força no volante e o perfurando.
— ‘Porra. — Ele tirou as mãos do volante, roçou a ponta do indicador nos dentes caninos, que estavam mais longos e pontiagudos. Não era necessário verificar no retrovisor interno para saber que os olhos haviam mudado de cor, saindo do jaspe preto para um amarelo-alaranjado.
“O que está acontecendo comigo? Merda, nunca tive problemas em controlar o meu lobo.” — Cerrou as vistas, respirou fundo e recolheu os caninos e as garras.
— Consegue explicar o que acabou de acontecer? — indagou Daren, curioso.
— Não sei — Kalel confessou. — Deve ser o estresse da viagem.
— Não acho que seja isso...
No fundo, Kalel também não acreditava ser o estresse, mas preferia não desperdiçar tempo e neurônios tentando entender o pequeno descontrole.
— Não foi nada, não precisa se preocupar — interrompeu a fala do amigo. — Então, vamos aguardar o lobo aqui no carro mesmo?
— Não, vamos sair, estou cansado de ficar sentado. — Daren conhecia muito bem o mais velho, cresceram juntos, então percebeu que ele cortou de propósito o assunto, mas preferiu não insistir.
Eles desceram do carro, subiram para a calçada e ficaram calados, cada um perdido na sua própria mente.
Daren pensava se era realmente uma boa ideia ficarem na casa do alfa depois do comportamento inesperado de Kalel, queria evitar problemas. Colocar um lobo extremamente dominante com dificuldade de se controlar na frente de um alfa não era uma ideia inteligente, ele priorizava evitar o caos.
Kalel também estava preocupado, a última coisa que ele necessitava era demonstrar descontrole na frente do alfa William e fazê-lo se sentir desafiado.
Cinco minutos se passaram, uma caminhonete parou atrás do carro deles e um homem moreno, de aparência jovem como eles, desceu e caminhou até os dois.
— Kalel e Daren?
— Sim, eu sou o Kalel e esse ao meu lado é o Daren.
— Pedro, beta da alcateia. O alfa William me pediu para buscá-los. — Sorriu e olhou para a caminhonete Nissan frontier preta. — Bela caminhonete.
— É o meu bebê — falou Daren, sorrindo.
— Então vamos? Vocês me seguem no carro de vocês, ok?
— Dá aproximadamente quanto tempo até a fazenda? — indagou Kalel.
— Uns trinta minutos, no máximo. — O beta andou para o veículo dele. — Vamos logo, o alfa está ansioso para conhecê-los.
Eles também se moveram e entraram na caminhonete, dessa vez Daren ocupou o banco do motorista. Assim que o beta saiu, ele o seguiu, mantendo distância segura.
Minutos depois entraram em uma estrada de via dupla, que os levaria para a fazenda. A paisagem por onde passavam era bonita, com bastante verde em ambos os lados da pista, cheio de árvores grandes, velhas e imponentes... definitivamente um lugar ideal para shifters viverem.
Como Canídeos era pequena, existiam poucas lanchonetes, sendo que a dos irmãos Rodrigues era uma das mais antigas e conhecidas, consequentemente bastante movimentada. Talvez por ser fim da tarde não estava tão lotada — como costumava ser aos finais de semana — quando Miguel entrou, mas, ainda assim, metade dos lugares já estavam ocupados.
Procurando Caíque, após correr as vistas pelo espaço, Miguel fez o pedido no balcão, subiu para o andar superior e cumprimentou alguns conhecidos com um aceno, sem parar de andar.
Caíque encontrava-se em uma mesa no canto direito, já no fim do cômodo, isolado. Ao vê-lo, Miguel apertou os passos, se esforçando para controlar a ansiedade que fazia as mãos suarem e as batidas do coração acelerarem.
— Boa noite! — cumprimentou, sentando na frente de Caíque.
— Boa... Tudo bem?
— ‘Tá sim! Já fez o seu pedido? Eu acabei fazendo o meu antes de subir.
— Eu também. — Caíque se mexeu na cadeira, apoiou os braços na mesa e encarou sério Miguel. — Então? O que você quer conversar sobre o Kayman?
— Você é direto e reto — brincou, sorrindo para disfarçar o nervosismo.
— Me desculpe. — Caíque sorriu, envergonhado.
— Tudo bem. Confesso que também quero iniciar logo essa conversa... — Miguel suspirou, mordeu o lábio inferior e questionou em tom sério: — O que está havendo com o Kayman? Ultimamente, sempre que o vejo, ele está triste e com medo de todos... Até para nós encontrarmos esta difícil, não entendo a mudança de comportamento, já tentei pensar em uma explicação plausível, mas não consigo. A última vez que o vi, ele estava bem abatido, chegou a chorar, porém, quando o questionei, ele falou que não era nada, que eu não precisava me preocupar, que só era estresse em razão de uma briga que teve com o pai... Sei lá, não senti que falava a verdade. Eu só preciso saber o que está acontecendo com ele.
Os olhos castanhos mel de Miguel brilhavam preocupação e um aperto angustiante espremia em seu peito.
Eles se fitaram por um longo segundo antes de Caíque tomar coragem para falar.
— Bom, nem sei como começar, na verdade, nem sei se é uma boa ideia te contar — admitiu, inseguro.
— Por quê?
— Eu quero muito ajudar o Kayman, muito mesmo, tanto quanto você, porém, eu não sei se vamos conseguir salvá-lo ou se simplesmente vou nós colocarmos em apuros te contando.
Era visível não apenas a sinceridade nas vistas de Caíque, mas também e principalmente o medo. Uma corrente fria correu a espinha de Miguel, que percebeu ser bem mais grave do que pensara, todavia, não recuaria, estava disposto a enfrentar o que fosse para ajudar o amigo, mesmo que se colocasse em risco.
— Não sou covarde, estou disposto a enfrentar tudo, seja lá o que for — falou firme, escondendo o medo que o beliscava. — Diga!
— Agora não consigo falar tantos detalhes, vou dar um resumo. Hum! Kayman está sendo abusado por um cara muito problemático... faz mais de dois anos que esse homem o obrigou a sair de casa e ir morar com ele, desde então, na verdade, já bem antes disso, o Kayman tem sido abusado sexualmente, agredido e torturado praticamente todos os dias.
Quando Caíque terminou de falar, espanto desenhava a face de Miguel. Que porra ele estava falando? Aquilo era verdade? Sabia ser grave, porém, nunca passou pela mente algo envolvendo abuso sexual... não acreditou que seria tão grave assim, ou melhor, escolheu pensar que não seria.
— Mas...Por que... — Ele não conseguiu formular uma frase, sua mente lutava para assimilar o que acabara de escutar.
A garçonete ruiva, de cabelo curto apareceu, trazendo os pedidos deles.
— Senhores, os seus ped... — Ela parou, preocupada ao se deparar com os semblantes sombrios dos dois jovens bonitos. — Tudo bem por aqui? Querem conversar?
— Sim, está tudo ok — Caíque respondeu com um sorriso falso e deslizou os dígitos pelos fios longos e sedosos, que caíam até o ombro. Descendente de pai indígena e mãe preta, ele era um homem com cerca de 1,70 de altura, de pele escura avermelhada, rostos sem manchas, sobrancelhas grossas, lábios carnudos e nariz largo.
Ele não foi sincero e ela percebeu, mas preferiu não insistir e soar inconveniente. Com um sorriso amigável, depositou a bandeja na frente deles, pediu licença e se afastou.
Miguel não sentia fome, mas optou por comer o hambúrguer e as batatas fritas enquanto organizava os pensamentos. Estava em estado de choque e encontrava-se perdido.
Caíque também não tentou iniciar diálogo enquanto comia, ficaram por quase quinze minutos sem trocar muitas palavras. Quando terminaram, Miguel limpou os lábios com guardanapo e se forçou a quebrar o silêncio.
— Por que ele nunca me contou? Somos amigos a tanto tempo — questionou, deprimido.
— Nem sempre queremos que um amigo veja o lado ruim da nossa vida. Além disso, ele quer te proteger.
— Me proteger? Não sou eu quem preciso de proteção aqui.
— Sinto muito. — Caíque não sabia o que dizer para consolar o outro.
— Por que o Kayman não procurou a polícia? Os familiares dele sabem? — Miguel tinha tantas perguntas.
— Sim, a família dele sabe, porém, eles têm muito medo desse homem para tentar algo. — Ele hesitou por um segundo antes de prosseguir. — Quanto a polícia, bem, esse homem manda na cidade e nem mesmo os tiras escapam do seu poder.
— De quem exatamente estamos falando? — O sentimento escuro de ódio se apossou do seu peito, nem sabia quem era, mas já odiava o filho da puta.
— William Mesquita.
— Como? — Miguel indagou incrédulo, desacreditado do que escutara.
Caíque soltou uma risadinha irônica.
— Difícil acreditar né?
Caíque se perguntou qual seria a reação de Miguel se descobrisse toda a verdade, havia omitido algumas coisas... muitas, na verdade.
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